O que é a vida?

O que é a vida?

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      Então ela me pergunta espantada: “Não está velho demais para não saber o que é a vida?” Eu sorrio com a hesitação que me caracteriza, conforme me contam os que gastam alguns minutos me caracterizando. Respondo depois de alguns segundos que me revelam a lentidão da eternidade: “Quando eu era jovem, sabia o que era a vida. Agora, quase aos 60, não sei mais”. Ela ri com sua franqueza habitual e me repreende por não resistir a essas pequenas frases de efeito. Contesto com todas as minhas forças, que são mínimas: estou sendo sincero. Na medida em que o tempo passou, com sua indiferença cronológica, eu me enchi de perguntas e me esvaziei de respostas. Não fiquei mais sábio. A sabedoria talvez seja só essa consciência tardia da ignorância.

      Quanto mais leio, menos sei. Não faço disso um cavalo de batalha contra os livros. Eles ensinam muito. Eu é que aprendo devagar. Nas leituras, aprendi com La Bruyère (1645-1696) que “para o homem, há apenas três acontecimentos: nascer, viver e morrer. Ele não sente o nascer, sofre ao morrer e esquece-se de viver”. Ela não se conteve: riu alto. Exibiu seus dentes muito brancos: “Nada mais óbvio”. Foi aí que eu me atrevi a discordar: vivemos como se fôssemos eternos. “Por algum tempo”, ela observou. Fiquei ensimesmado. Gosto dessa palavra. Se refutava La Bruyère sem qualquer reverência, que ficasse com Rousseau para quem o essencial era viver naturalmente. Ela reagiu:

– Naturalmente, com naturalidade ou em meio à natureza?

      Fiz um trejeito com os ombros, aquele gesto que se chama de “dar de ombros”. Ela não achou elegante da minha parte. Senti isso por um leve tremor no seu lábio inferior. Se eu tivesse boa memória, teria citado Rousseau: O hábito de me voltar para dentro de mim me fez finalmente perder o sentimento e quase a lembrança dos meus problemas, então aprendi com minha própria experiência que a fonte da verdadeira felicidade está em nós e que não depende dos homens fazer realmente miserável quem sabe ser feliz”. Ela perdeu o ar discreto. Debochou:

– A felicidade é uma loteria – cravou.

      Como pode ter dito isso se eu não fiz a citação? Bem eu a fiz pela metade, de acordo com os buracos da minha parca memória. A reação dela foi proporcional à minha ingenuidade. Não fica bem ser ingênuo na aurora da velhice. Fiquei chateado por ter aberto o flanco com tanta facilidade. Afinal, o que é a vida? Foi a pergunta que fiz brutalmente, acreditando que por ser mais jovem ela me entregaria uma resposta como se fosse uma pizza ainda quentinha. Tive uma surpresa:

– Não tenho a menor ideia. Talvez seja o relato do que já vivemos.

      O leitor, com sua experiência, deve ter resposta melhor. Fico no aguardo. Enquanto espero, cito Bertrand Russell, que, homem de lógica, não se envergonhava de falar de felicidade: “Uma vida feliz deve ser em grande parte uma vida tranquila, pois só numa atmosfera calma pode existir o verdadeiro prazer”. Ainda existe vida tranquila? Parece que a melhor forma de ser feliz é nunca se perguntar o que é a vida. Ela ri, um riso frouxo, e declara solenemente: “Você não consegue”.

 

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Sempre pensei a vida como um abismo

Precipício sinuoso com o qual cismo

Enquanto descasco doces pêssegos

E recolho impressões das nuvens.
 

Sempre vi o amor como um trigal

Plantação dourada e ondulante,

Trêmula como minha alma

Secando num esquálido varal.

 

Sempre encarei a irrupção da morte

Como um simples e profundo corte

Abrupto recorte na linha do tempo,

Encontro entre a nudez e o relento.

 

Até hoje me vi como um cultivador,

Semeador de verbos e experiências

Nos sulcos cada vez mais fundos,

Dessa terra seca que é o meu rosto.

 

Sei que morrerei em agosto,

Pois toda morte tem esse gosto,

Esse clima, esse perfume,

Essa sina, esse lume,

Essa aspereza, esse gume

Dos pêssegos descascados

À beira das nuvens e dos abismos

Que atravessamos cruzando pontes

Magras como esquálidos varais.

 


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