O que me comove

O que me comove

Emoções pela vida

publicidade

    Ouvi dizer que a partir de certa idade a pessoa já não se comove com coisa alguma. Fica blindada. O que te comove, leitor? Conta aí. Eu me comovo com a vida como ela se dá a ver em muitos lugares: pessoas fazendo longas filas para comprar ossos, única alimentação ao alcance do bolso esquálido. Também me comovo ao ver no telejornal que um homem foi espancado até a morte por ter reclamado do preço da carne. Eu me comovo pensando na situação de um amigo, que todos definem como pessoa do bem, intubado, aos 70 anos de idade, com covid-19. Eu me comovo com os que lutam e não conseguem se arrancar do atoleiro por falta de oportunidades, de recursos, de apoio ou de uma luz no fim da rua.
    Achas tudo isso piegas, leitor? Não creio. Sei que temos coisas em comum. Eu me comovo com as injustiças que se eternizam, com as violências que não desaparecem, feminícidio, racismo, homofobia, mulheres maltratadas por seus parceiros. Eu me comovo também com coisas belas: o sol banhando a cada amanhã a sala onde trabalho, os passarinhos cantando no parque, a lembrança de uma pandorga no céu, um cheiro de terra molhada, uma criança correndo com seu cachorro. Eu me comovo com os quase seiscentos mil mortos pelo coronavírus no Brasil.
    Eu me comovo também com conquistas tardias, mas que revelam mudanças de imaginário: o prêmio Nobel da literatura para o tanzaniano Abdulrazak Gurnah, autor de dez romances, laureado, segundo a Academia Sueca, “por sua penetração intransigente e compassiva nos efeitos do colonialismo” e por obras que "evitam descrições estereotipadas e abrem nosso olhar para uma África Oriental culturalmente diversificada". Em edição de Portugal o leitor encontra de Gurnah o livro “Junto ao mar”. Eu me comovo com as mensagens que recebo de leitores. Um que me pergunta se são os livros que me fazem ter a mente cheia de beleza; outro que afirma ser o amor da Cláudia que me faz escrever com tanta paixão; um que me critica por ser tão duro.
    Eu me comovo com a poesia, com as canções de amor e de sonho, com a família e os amigos, com as tristezas alheias, com o movimento dos barcos nas minhas memórias e com livros que nascem e morrem nos confins da minha imaginação cansada de guerra. Mais do que tudo, leitor atento e amigo, eu me comovo com as misérias deste mundo. Eu me comovo com os que sofrem humilhações, com os que silenciam para poder gritar, com os que morrem todas as noites para renascer nos combates cotidianos da manhã seguinte. Eu me comovo com os que precisam partir, os refugiados que andam pelo mundo em busca de um porto seguro, de uma pátria que ficou para trás, de uma vida boa e digna pela frente.
    Creio que me comoverei até o último dia do meu andar. Eu me comovo com os que procuram emprego e não encontram, com a eleição de Davi Kopenawa para a Academia Brasileira de Ciência. Em tempos de pandemia, eu tenho me comovido com os abraços que não puderam ser dados. O leitor de humor mais ácido talvez diga: “que fofo!”. Que posso fazer se eu me comovo com a luz das estrelas cintilando na imensidão do espaço enquanto meu coração bate pelos que persistem.

 

 


Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895