O velho Borges sempre vendo chover em Palomas

O velho Borges sempre vendo chover em Palomas

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Afinal, qual o sentido dessa história que se repete e que já foi contada por mim?
O que há de novo?
O que dizem os manuscritos, em árabe ou aramaico, esquecidos em Palomas com a morte de Rafael Vidal?
Sei que os estudantes querem saber.
A minha resposta vai decepcionar todo mundo: eu mesmo não sei. Rafael Vidal é um personagem. Ele existe em mim a partir de fragmentos da realidade. É o fruto de uma época em que o Brasil pensou em invadir o Uruguai para libertar o cônsul Aloísio Dias Gomide, seqüestrado pelos tupamaros.
É tudo que eu realmente sei sobre Vidal. Ele é muito real em mim. Mas eu não o domino.
Volta e meia, reaparece nos meus sonhos ou no meu imaginário e ganha vida e força contra a minha vontade. Vida não morre jamais.
Palomas sempre fui cheia de personagens estranhos e indecifráveis, como se tivessem saído de algum livro ou antecipassem histórias que se tornariam conhecidas, misturando-as antes mesmo de existirem. Lembro-me de que na estrada levando do centro do vilarejo até o pequeno cemitério incrustado numa coxilha, não longe do belo “Cerro de Palomas” – essa meseta altiva que se ergue soberana sobre a verdura da campanha –, havia um casebre quase tocando o chão. Na sua única janela com vidros, um velho contemplava a estrada com olhos perdidos. Eu passava por ali todos os dias ao final da tarde. Ia recolher os animais soltos para comer. Os bichos acabavam sempre costeando a cerca do campo santo, onde havia muito pasto. Eu sentia muito medo. Certa vez, avistei uma figura vestida de banco que se balançava freneticamente junto aos túmulos. Dei de rédeas e só parei de galopar na porta da nossa casa.
Tive, no entanto, de voltar para trazer as vacas. Meu pai não quis acreditar na minha história. A figura de branco era um imenso caraguatá florido. Nos meses de inverno, quando a chuva parecia açoitar o povoado para sempre, eu passava diante do casebre com o seu único olho de vidro e lá estava o velho Borges vendo chover em Palomas. Era um homem taciturno. Apenas uma vez eu o encontrei no pátio da sua casinha. Estava sentado numa cadeira de balanço e tinha um livro sobre os joelhos. Não se mexia. Parecia estar em outro lugar. Eu já sabia ler e me aproximei instintivamente para testar os meus conhecimentos.
Só consegui ler algumas letras: ...Mil e uma noi... O velho tossiu. Eu saí correndo. Nunca voltei lá.
Palomas era assim.
Tinha o “seu” Potes, um homem de algumas posses, mas que vivia quase como eremita no meio dos seus livros e revistas. Ao que consta, por causa de uma briga com a mulher. Ela teria esboçado um gesto de aborrecimento quando ele foi lhe fazer uma carinho ao chegar das lides campeiras. Disso teria resultado um juramento de nunca mais dirigir a palavra a ela e um isolamento eterno. Um neto dele foi meu aluno na PUC.
“Seu” Potes foi a primeira pessoa a me falar de literatura. Não sei se ele era amigo do velho Borges. Sei apenas que fiquei estarrecido quando fui com meu pai buscar os animais junto ao cemitério. Borges estava na janela fitando o aguaceiro. Meu pai comentou subitamente: “O velho Borges é cego”.
Faz duas noites, sonhei com o velho Borges.
Ele estava todo de branco, em pé, na soleira da porta.
Falou assim: "Tem que não goste de histórias".
"Eu sei", respondi, taciturno.
"A tua vai acabar em Samarcande", disse ele, tirando os óculos escuros".
"Ou em Palomas", balbuciei.
"Dá no mesmo".
"Toda história é sempre a mesma história. Todo lugar de nascimento ou da infância é Palomas, Samarcande, Macondo, um subúrbio de Buenos Aires, de Montivdéu, de Bogotá, um bled, um ponto de Ouarzazate ou de Paris, de Paros ou de São Miguel dos Milagres..."
"Que coisa!"
Voltei do banheiro e tratei de dormir.
Na parede branca, uma foto de Steve Jobs todo de preto.

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