Os novos inimigos de Tim Maia

Os novos inimigos de Tim Maia

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A Rede Globo desprezou Tim Maia quando ele batalhava para mostrar a sua arte.

Agora, com uma minissérie de quinta categoria, reescreveu a história para deixar Roberto Carlos bem na fita.

Tim Maia foi assassinado por essa versão Global dos fatos.

Meu amigo Ricardo Carle, que infelizmente já não está deste lado do universo, não gostava de Tim Maia. Nem do Fagner. Eu conseguia entender a sua ojeriza a Fagner, que tem algo de brega, embora eu goste de muitas das suas canções. Em relação ao Tim Maia, Ricardo e eu estávamos em completo desacordo. Ricardo tinha bom gosto. Jamais entendi sua rejeição ao Tião da Tijuca. Eu sou fã do Tim Maia. Cantava muito. Cantava mais do que Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Caetano Veloso, Chico Buarque, Tom Jobim e todos os outros juntos. Era um louco genial. Boa parte das suas maluquices tinha a ver com sua condição de outsider negro, gordo, pobre e rebelde.

Cada época gera uma leitura das coisas, algumas mais alfabetizadas, outras menos. Li que está cada vez mais na moda a noção de poliamor. Nos anos 1960, isso era chamado de amor livre. Antes, de sacanagem mesmo. Ninguém era de ninguém e era permitido ficar ou amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo. Amor livre ou poliamor é para a maioria uma sem-vergonhice ou uma putaria. Os homens quase sempre praticaram o poliamor clandestino também chamado de adultério ou de escapadinha. O poliamor feminino sempre foi menos aceito e produziu muitos crimes passionais, sendo que os assassinos podiam ser absolvidos por terem agido em defesa da honra, ou seja, movidos pela dor de corno. Tim Maia cantava como poucos, com seu vozeirão rouco, decepções amorosas.

Nada mais romântico do que a música, inclusive o rock. Grande parte das letras só fala de amor.

Entre o estilo de vida de Roberto Carlos e do Tim Maia, fico com o do Tim. Roberto Carlos é mala. Vive como uma tia solteirona hipócrita que, de vez em quando, chuta a moral para o alto e solta a franga. Depois, passa seis meses de penitência. Mas tem grandes composições. Faz parte do imaginário brasileiro. Se Tim fosse americano e não apenas um hóspede temporário de uma prisão dos Estados Unidos, teria certamente virado mito internacional. Tinha voz, poesia e maldição. Lembro-me de uma noite em que Ricardo Carle e eu estávamos bebendo no Lola, na Osvaldo Aranha, e eu coloquei Tim Maia na jukebox do bar. Ricardo enlouqueceu. Gritava freneticamente:

– Tira o Tião, tira o Tião, tira o Tião...

Enquanto isso, de dentro da máquina, Tim Maia estraçalhava:

– Me dê motivos...

Pena que Ricardo e Tião não se conheceram. Teriam sido grandes amigos. Eram igualmente malucos. Reduzir Tim Maia à sua maluquice é sensacionalismo barato. A arte de Tim foi superior aos episódios da sua vida confusa e cheia de percalços. Gosto de ouvir Tim Maia no volume máximo. Funciona como uma imersão. Tim Maia foi a última encarnação do barroco no Brasil: saturação, excesso e genialidade. Glauber Rocha e Darcy Ribeiro, cada um do seu jeito, também foram barrocos, essa “pérola rugosa”, conforme a expressão de Eugenio D’Ors. Assim também foi Ricardo Carle, que morreu antes de produzir uma obra literária que se esboçava como uma explosão.

Ouço Tim Maia quando sinto saudades do meu amigo Ricardo. Ele ficaria indignado com essa homenagem.

Nelson Motta, biógrafo de Tim Maia, contradisse seu livro para adaptar-se ao desejo da Globo de aliviar a barra de Roberto Carlos, que humilhou Tião oferecendo-lhe um par de botas velhas e um pouco de dinheiro amassado quando foi procurado em busca de ajuda para fazer decolar um talento que ele conhecia muito bem.

Na série da Globo, Roberto Carlos posa de lançador da carreira de Tim.

Deve ser por isso que a Globo retirou do site sua sopa indigesta sobre o rei brasileiro da música negra.

Pedro Bial aceitou escrever a biografia chapa branca de Roberto Marinho, que passou de pilar da ditadura militar a defensor astuto da democracia. Nelson Motta ajoelhou-se para ver seu livro sobre Tim Maia voltar às paradas.

Assim se escreve a história no Brasil.

Ricardo Carle não gostava de Tim Maia. Gostava menos ainda de Nelson Motta, que chamava de babaca bonzinho.

O que Ricardo Carle achava de Roberto Carlos?

Impublicável.

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