Pamuk e as noites da peste

Pamuk e as noites da peste

Prêmio Nobel trabalha em romance sobre uma epidemia

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Grandes historiadores e escritores falaram de peste. Tucídides foi um deles. Outro autor consagrado a tratar do assunto foi Daniel Defoe, em “Diário do ano da peste”. O italiano Alessandro Manzoni escreveu “Os noivos”, um romance de 1827 sobre uma epidemia de 1630. Dostoievski refere-se a peste em “Crime e castigo”. Albert Camus, que seria prêmio Nobel da literatura, imortalizou o seu “A peste”. O turco Orham Pamuk, Nobel da literatura de 2006, vinha trabalhando silenciosamente num livro sobre “o grande flagelo da humanidade”. Ao final de quatro anos de pesquisa e escrita, foi surpreendido pelo coronavírus. A realidade decidiu quebrar o sigilo da sua ficção.

Pamuk levantou muitos dados que refletem o passado no presente com uma inconsistência futura certeira. A peste sempre vem de fora. Nunca é caseira. O grego Tucídides falava em mal vindo da Etiópia ou do Egito. Dostoievski, em “mal egípcio”. O contágio sempre se propagou junto com boatos, rumores, falsas informações e maldades gratuitas. A cada vez se buscou um bode expiatório, um culpado. No imaginário milenar as pestes nascem no oriente profundo. Em todos os casos relatados há insatisfação com os governos, que inevitavelmente perdem tempo, minimizam o perigo, manipulam números e perdem o jogo. Na história e na literatura uma parte da população ataca os governantes por falta de providência enquanto outra parte resiste a quarentenas.

Não há peste sem fake news. Algo mudou? Segundo Pamuk, antes o medo crescia com a falta de informações. Agora, com o excesso. Defoe mostra a ira da população contra as instituições. Manzoni caricatura um governante que decidiu ignorar a peste e passou a estimular aglomerações confirmando as festividades de um príncipe amigo. Deu com o burro na água. Pamuk chama a atenção para o desespero de homens e mulheres analfabetos, sem acesso a informações confiáveis, que eram poucas, entregue ao próprio destino e ressentidos com tal fim. “Noites da peste” é o título do romance de Orham Pamuk. Ele agora terá de refletir sobre como lidar com a peste atual numa obra que pretendia lidar exclusivamente com o passado. Colocará no livro a sua primeira conclusão em choque: a humanidade aprende pouco com as suas pestes?

Yuval Harari, famoso pelos seus best-sellers, questiona: “A pandemia atual vai mudar as atitudes humanas em relação à morte? É provável que não. Muito pelo contrário. O mais provável é que só nos leve a redobrar nossos esforços para proteger vidas humanas, pois a reação cultural dominante à Covid-19 não é a resignação — é uma mistura de indignação e esperança”. Queremos viver. Acreditamos na vida. Temos aumentado o nosso tempo de vida a cada ano. Temos esperança em nossos heróis, os médicos e todo o pessoal da saúde, e em nossos super-heróis, os cientistas. Harari enfatiza que não perguntamos se haverá vacina, mas quando. Pamuk sugere, na contramão, que aproveitemos para desenvolver um pouco de humildade como resultado da “solidariedade engendrada pelas horas sombrias que atravessamos. Possivelmente os dois tenham razão.


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