Pequena entrevista com Djamila Ribeiro

Pequena entrevista com Djamila Ribeiro

Intelectual fala de racismo estrutural e apropriação cultural

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Racismo, uma estrutura social

Uma das principais pensadoras brasileiras atuais, autora do best-seller “Pequeno Manual Antirracista” e do impactante “Lugar de fala”, Djamila Ribeiro é uma das convidadas do Festival POA 2020 – Exponencialidades para Todos (inscrições em festivalpoa.com.br). Na próxima sexta-feira, 4 de dezembro, às 18 horas, ela estará em live para abordar os temas que doem no momento neste Brasil da desigualdade, da violência mortal e das tensões raciais cada vez menos dissimuladas. Em rápida entrevista por e-mail, em função da sua pesada agenda, ela trata de racismo, desconforto da branquitude com a mudança da sensibilidade e apropriação cultural.

O Brasil está menos racista em função de uma mudança de sensibilidade ou o racismo agora está mais exposto e criticado?

Djamila Ribeiro – Penso que estamos em um momento de intensa mobilização e nunca o debate racial esteve tão em evidência como agora na sociedade em geral. Isso é resultado de uma luta antiga dos movimentos negros e agora está em continuidade. As consequências desse momento devem ser ainda avaliadas com cuidado, mas é importante termos cautela, pois racismo é uma estrutura da sociedade, está presente nas relações raciais e, como tal, necessita de um combate intenso e incansável.

Todo branco, num país como o Brasil, é estruturalmente racista?

Djamila – Ao passo que entendemos o racismo como um sistema que nega direitos a um grupo em detrimento de privilégios a outro, membros pertencentes a esse grupo privilegiado usufruem desse sistema racista, independente de eventuais qualidades morais positivas, como ser gentil com pessoas negras, por exemplo. Então, toda pessoa branca é depositária de privilégios pelo sistema racista que já existia antes mesmo de nascermos, posto que secular, e segue em vigor presente nas relações sociais.

A branquitude está “desconfortável” com o questionamento dos seus privilégios estruturais por negros empoderados?

Djamila – Branquitude, assim como negritude, é uma categoria heterogênea. Somos humanos e, como tal, somos plurais, com perspectivas diferentes. Então nesse sentido, é preciso aprofundar. Parte da branquitude está sim desconfortável, pois racismo é uma estrutura de poder e tensioná-lo certamente traz incômodos e forte resistência, sobretudo em um país de forte tradição colonial como é o Brasil. De outro lado, há pessoas brancas engajadas na luta antirracista e isso é percebido em vários setores da sociedade, como na educação aos filhos e filhas com biografias negras, por exemplo.

O que é realmente apropriação cultural, como estrutura de poder, visto que não é uma simplificação sobre branco poder ou não usar elementos da cultura negra como um turbante?

Djamila – Apropriação cultural é uma decorrência da estrutura de poder colonial. Como diz Rodney William, há um poder instituído na sociedade desde a colonização que delega aos dominantes o direito de definir quem é inferior nessa estrutura e como se pode dispor de suas produções culturais e até de seus corpos. Ou seja, trata-se de uma questão muito mais profunda sobre poder ou não poder usar turbante. Discutir apropriação cultural é discutir esvaziamento de culturas de grupos sociais oprimidos sem qualquer relação de reciprocidade. É um debate fundamental.

*

Homens ao mar

 

No porto do Ceará não se embarcam mais escravos,

Se faz justiça nas ruas sem togas nem agravos,

Em 1831, para inglês ver, proibiram o tráfico

Aqui já não tem mais negros para vender.

Da Europa virá a nova mão de obra

Os negros vão se tornar a sobra,

Viverão e morrerão em cada dobra

De Coragem, sonho e memória da infâmia.

No Sul, os mais afoitos falam até em eslavos,

Onda alta, fúria negra e tambores silenciosos,

Rugem as matracas contra os senhores odiosos.

No porto do Ceará manda agora o Dragão do Mar,

A vida desses negros já não está suspensa no ar.

Homens altos, homens tristes, andam pela praia,

A voz forte ordena que dali ninguém mais saia.

No porto do Ceará não se embarcam mais escravos,

No Rio de Janeiro alguns já falam em batavos,

No porto do Ceará não se embarcam mais escravos.

É o fim de uma travessia velha como os anos,

Em São Paulo multiplicam-se os italianos,

Trazendo utopias, porco dio e deuses romanos,

Já andam mais abaixo os louros germanos.

Uma negra esguia como o vento ou a miragem,

Corre mar a dentro como o rastro de uma aragem,

Vai cantando, vai chorando, vai falando assim:

No porto do Ceará não se embarcam mais escravos...

Em Porto Alegre ainda se matam negros “por acaso”.


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