Perdeu, Boi

Perdeu, Boi

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Juca era uma peça. Acreditava em conceitos capazes de esclarecer situações vividas de fato. Poucos conceitos pareciam-lhe tão óbvios e pertinentes quanto o de campo na definição do sociólogo, já falecido, Pierre Bourdieu: “Um campo é um espaço social estruturado, um campo de forças – há dominantes e dominados, há relações constantes, permanentes, de desigualdade, que se exercem no interior desse espaço – que é também um campo de lutas para transformar ou conservar esse campo de forças. Cada um, no interior desse universo, empenha em sua concorrência com os outros a força (relativa) que detém e que define sua posição no campo e, em consequência, suas estratégias”. Mandou emoldurar para colocar na parede.

Juca era dominado. Empregava toda a sua força, bastante relativa, em estratégias que sempre fracassavam. Outro conceito que o encantava era o de crime perfeito na versão do francês, também já falecido, Jean Baudrillard, o oposto de Bourdieu. No crime perfeito, o virtual mata o real e ninguém fica sabendo. Não há provas. Nem a teoria do domínio do fato seria capaz de encontrar culpados. A regra artificial subverte o vivido e faz com o que realizado se torne menos importante do que o “escriturado”. Em bom português, o feito vale menos do que o articulado em frases sobre processos. Uma catedral de palavras vale mais do que um edifício de pedra, vidro e ações. Até a vítima, o dominado, se convence das razões que selam a supremacia do dominante. Bourdieu e Baudrillard se encontram. Crime perfeito é quando o campo se torna curral.

O escravo passa a reverenciar o amo.

Juca morou muitos anos em Palomas. Saiu de lá por não suportar mudanças nas regras do jogo com o jogo andando, o que aconteceu duas vezes em meia dúzia de anos. Também não conseguia entender que de três produtores locais, dois sempre integrassem a CGT (Comissão do Jogo de Truco) e o terceiro sempre ficasse de fora. Dois eram ativos. O terceiro, ele, era passivo.

As melhores estratégias de Juca eram aquelas em que ele se fingia de morto. Por estar morto. Quando nada fazia, até emplacava algum resultado. Ser é ser percebido. Juca só queria ser sincero. Em 2014, pretendia ser outro e fazer tudo o que não fazia por ser um homem imperfeito, vaidoso e incompetente: concorrer a prêmios literários e jornalísticos (perderia todos, mas tentaria sorrir e aceitar as regras do jogo), ir a campo de futebol com amigos, tentar compreender e admirar escritores herméticos e aceitar seu lugar no campo. Ou no curral. Ruminaria até ficar mais sábio. Ou mais bovino.

A vida é bela. É preciso buscar a felicidade. Para Zoroastro a felicidade deveria ser viver longe das bestas selvagens. Para Aristóteles, fazer o certo. Para Lao Tsé, viver em sintonia com a natureza. Para Confúcio, a civilidade. Para Rousseau, voltar às coisas simples. Para os budistas, eliminar o desejo. É uma solução radical. Contra os males do desejo, parar de desejar. Para os consumistas, a felicidade é desejar tudo. Para Juca, seria desejar o que se pode alcançar. Budismo moderado.

O ano de 2013 chega ao seu fim. A frase assassina dos últimos doze meses só poderia ser esta, imbatível:

– Perdeu, Boi.

Juca gostava de dizer: “Somos todos Amarildo”.

E “O Boi sou eu”. Dizia “le boeuf c’est moi”.

Foi atropelado lendo Bourdieu na parada do ônibus.

– Perdeu, Boi.

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