Pierre Lévy: a revolução digital só está no começo

Pierre Lévy: a revolução digital só está no começo

publicidade

Nascido na Tunísia, em 1956, o sociólogo e filósofo francês Pierre Lévy é um dos maiores especialistas mundiais em internet e em culturas tecnológicas digitais e seus impactos. Professor de Inteligência Coletiva na Universidade de Ottawa, depois de ter lecionado nas universidades Paris VIII e Trois Rivière (Canadá), autor de livros importantes traduzido em várias línguas, como “As tecnologias da inteligência” (1990), “A inteligência coletiva – por uma antropologia do ciberespaço”(1994), “O que é o virtual?” (1995) e “Cibercultura” (1997), ele sempre se posicionou como um defensor dos aspectos positivos da internet, especialmente no que se refere à democratização do acesso ao saber, às informações e ao direito concreto de expressão.

Nesta entrevista para o Caderno de Sábado, Pierre Lévy faz um balanço de pouco mais de três décadas de web, a teia global, o hipertexto, a navegação na rede ao alcance de todos.

Mais do que tudo, ele avisa que vem mais revolução por aí.

Correio do Povo – O desenvolvimento da internet levou mais tempo do que normalmente se imagina. Com o surgimento da web, há aproximadamente 30 anos, porém, aconteceu uma explosão. Pode-se dizer que o mundo, de fato, entrou numa nova era? Há muito ainda para surgir ou esse ciclo, com tudo o que ele comporta, já bateu no teto?

Pierre Lévy – De qualquer maneira, a internet se expandiu mais rapidamente do que qualquer outro sistema de comunicação na história. No começo dos anos 1990, havia 1% da população mundial conectada. Uma geração depois, já eram 40%. Avançamos rapidamente para 50% e mais... Estamos apenas no começo da revolução do meio do algoritmo. Nas próximas décadas, acompanharemos várias mutações. A computação ubíqua, que já faz parte da nossa paisagem, vai se generalizar fazendo com que a maioria esteja permanentemente conectada. O acesso à análise de grandes quantidades de dados, hoje nas mãos de governos e de grandes empresas, vai se democratizar. Teremos cada vez mais imagens de nosso funcionamento coletivo em tempo real. A educação vai se focar na formação crítica e no tratamento coletivo de dados. A esfera pública será internacional e se organizará por nuvens semânticas nas redes sociais. Os países passarão da forma “Estado-nação” para constelações de Estado, com um território soberano e uma zona desterritorializada na infosfera de conexão total. As criptomoedas, moedas digitais criptografadas, vão se disseminar.

Caderno de Sábado – Fala-se muito em internet dos objetos e em internet total. São verdadeiras mutações ou apenas acelerações?

Lévy – A internet pode ser analisada em dois aspectos conceitualmente distintos, mas praticamente interdependentes e inseparáveis. Por um lado, a infosfera, os dados, os algoritmos, imateriais e ubíquos. São as nuvens. Por outro lado, os receptores, os gadgets, os smartphones, os dispositivos móveis de todos os tipos, os computadores, os data-centers, os robôs, tudo aquilo que é inevitavelmente físico e localizado: os objetos. As nuvens não podem funcionar sem os objetos. Os objetos não podem funcionar sem as nuvens. A internet é a interação constante do localizado e do desterritorializado, a interação dos objetos e das nuvens. Tudo isso pode logicamente ser deduzido da automatização da manipulação do simbólico por meio de sistemas eletrônicos. Sentiremos cada vez mais, de agora em diante, as consequência disso tudo em nossas vidas cotidianas.

 

Caderno de Sábado – Depois de 30 anos de grandes novidades – da web, o famoso www ou a teia – até as redes sociais com seus milhões de adeptos, qual pode ser a grande mutação dos próximos tempos?

Lévy – Depois do surgimento da web, na metade dos anos 1990, não houve grande mutação técnica, somente uma profusão de pequenas evoluções e progressos. No plano sociopolítico, o grande salto me parece ser a passagem de uma esfera pública dominada pelos jornais, pelo rádio e pela televisão para uma esfera pública centrada nas “wikis”, nos blogs, nas redes sociais e nos sistemas de moderação de conteúdos onde todo mundo pode se exprimir. Isso significa o começo do fim do monopólio intelectual dos jornalistas, dos editores, dos políticos e dos professores. Um novo equilíbrio ainda não foi alcançado, mas o velho sistema dominante está em franca erosão.

Caderno de Sábado – O senhor fala faz muito tempo em inteligência coletiva e em coletivos inteligentes. Vê-se, entretanto, que as redes sociais podem ser utilizadas para o bem e para o mal, por exemplo, para disseminar ideias radicais e extremistas. Pode-se falar de uma inteligência coletiva do mal e da internet como um instrumento também a serviço da estupidez e da barbárie universais?

Lévy – Falo em inteligência coletiva para enfatizar e estimular o aumento das capacidades cognitivas em geral, sem fazer juízo de valor. Refiro-me ao aumento da memória coletiva, ao crescimento das possibilidades de gestão e de criação de redes e das oportunidades de aprendizagem em sistemas de cooperação, com acesso universal a informações e dados. Acredito que esse aspecto é inegável e que todos os atores intelectuais e sociais responsáveis deveriam utilizar essas novas possibilidades na educação, na gestão do conhecimento, nas empresas e nas deliberações políticas democráticas. É preciso inserir a internet na longa série que passa pela invenção da escrita e do impresso. Trata-se de um considerável ganho na capacidade humana de tratamento das operações simbólicas. O núcleo dessa capacidade, contudo, é a linguagem, que existe desde sempre e não depende de qualquer tecnologia em particular. Graças à linguagem existem a arte, a cultura, a religião, os valores e a complexidade das instituições econômicas, sociais e políticas. Mas falar de linguagem significa também falar em mentira e manipulação. Falar em valores significa falar em bem e mal, belo e feio. É absurdo imaginar que um instrumento que aumenta os poderes da linguagem em geral pudesse favorecer somente a verdade, o bem e o belo. É preciso sempre perguntar: verdadeiro para quem? Belo para quem? Bem para quem? O verdadeiro vem do diálogo aberto aos diversos pontos de vista. Direi até mais do que isso: se tentássemos transformar a internet numa máquina de produzir somente a verdade, o belo e o bem, só chegaríamos a um projeto totalitário, de resto, sempre fadado ao fracasso.

Caderno de Sábado – Nas redes sociais, a violência verbal é enorme. As pessoas insultam-se, ofendem-se e dividem-se, cada vez mais, em direita e esquerda, bons e maus, os meus e os teus. Há jornalistas que fecham os seus blogs aos comentários de leitores saturados de posts racistas e de ameaças de todos os tipos. Essa é ainda uma etapa de aprendizagem dos recursos de interação disponíveis?

Lévy – Se alguém me insulta ou me envia coisas chocantes no twitter ou num blog, eu bloqueio e ponto final. Certo é que nunca teremos uma humanidade perfeita. Em contrapartida, o usuário da internet não é um intelectual menor de idade. Ele tem em mãos um grande poder, mas tem também grandes responsabilidades a cumprir. O problema, sobretudo para os professores, consiste em educar esses utilizadores da internet. É preciso ensinar a estabelecer prioridades, a atrair a atenção, a fazer uma escolha justa e uma análise crítica das fontes às quais nos conectamos. Temos de prestar atenção na cultura daqueles com quem nos conectamos e precisamos aprender a identificar as narrativas feitas e as suas contradições. Essa é a nova “digital literacy” (alfabetização digital): tornar-se responsável.

Caderno de Sábado – Uma das questões mais discutidas da internet diz respeito aos direitos de autor e a gratuidade dos conteúdos na rede. Os internautas tendem a exigir que tudo seja gratuito. Mas a informação tem um custo. Que vai pagar? Os jornais, cada vez mais, fecham os seus sites deixando apenas uma parte do que produzem disponível a todos. O tempo de pegar para consumir conteúdos chegou?

Lévy – Não é impossível fazer com que os usuários da internet paguem por bons serviços. Além disso, a publicidade e a venda de conteúdos produzidos por utilizadores a empresas de marketing constituem hoje as principais maneiras de “monetizar” os serviços na rede. O direito autoral está claramente em crise no que diz respeito à música e, cada vez mais, para os filmes. Faço questão de destacar os campos da pesquisa e do ensino nos quais os editores aparecem como os principais freios ao compartilhamento de conhecimentos. A remuneração da criação na era dos meios algorítmicos é um problema complexo para o qual eu não tenho resposta simples e válidas em todos os casos.

Caderno de Sábado – O senhor tem falado também em democracia virtual. Já é possível falar em avanço rumo a uma nova era democrática?

Lévy – Sim, na medida em que é possível ter acesso a fontes de informação muito mais diversificadas que no passado e na medida também em que todos podem se exprimir para um vasto público. Enfim, porque é muito mais fácil para os cidadãos colocarem-se em contato com vistas à organização, à deliberação, à discussão e à ação. Essa “democracia virtual” pode ter uma base local, como em certos projetos de “cidades inteligentes”, mas há também uma desterritorialização ou uma internacionalização da esfera pública. É possível, por exemplo, acompanhar, em tempo real, a vida política de inúmeros países e de seguir pontos de vista de pessoas, sobre assuntos que nos interessem, no planeta inteiro. Não podemos esquecer as campanhas políticas que utilizam as tecnologias de análise de dados e dos perfis de marketing, assim como o monitoramento, ou até a manipulação, da opinião pública mundial nas redes sociais pelas agências de inteligência e de informação (de todos os países).

Caderno de Sábado – A internet já mudou a nossa maneira de pensar, de ler e de organizar a nossa construção mental do saber?

Lévy – Isso é inegável. O acesso imediato a dicionários, enciclopédias, entre as quais a Wikipédia, livros (gratuitos ou pagos), vídeos educativos e outros dispositivos colocou à disposição de todos o equivalente a imensas bibliotecas. Além disso, podemos ser assinantes de incontáveis sites especializados e contatar redes de pessoas interessadas nos mesmos assuntos para construir saberes de modo colaborativo. O desenvolvimento de novos tipos de rede de colaboração na pesquisa ou na educação (os famosos MOOC – Curso Online Aberto e Massivo, “Massive Open Online Course”) são a prova clara e definitiva disso que estou sustentando nesta resposta.

Caderno de Sábado – Tem uma canção brasileira famosa que diz, “ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais”. Depois da internet, somos os mesmos e vivemos como nossos pais ou nos separamos deles?

Lévy – Continuamos seres humanos encarnados e mortais, felizes e infelizes. A condição humana fundamental não muda. O que muda é a nossa cultura material e intelectual. O nosso potencial de comunicação multiplicou-se e distribuiu-se no conjunto da sociedade. A percepção do mundo que nos cerca aumentou e tornou-se mais precisa. A nossa memória cresceu. A nossa capacidade de análise de situações complexas a partir de massas de dados vão, em breve, transformar a nossa relação com o meio ambiente biológico e social. Graças à quantidade de dados disponíveis e ao crescimento de nosso poder de cálculo, vamos provavelmente experimentar no século XXI uma revolução das ciências humanas comparável à revolução da ciências naturais no século XVII. Nós somos sempre os mesmos, mas mudamos.

 

Mais Lidas

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895