Poética do tempo

Poética do tempo

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Jogo bola todo sábado à tarde apesar das lesões que em 2016 tentaram forçar a minha aposentadoria. Resisti. Seria precoce. Ainda tenho gols a fazer e passes a dar. Creio que deve ser mais fácil parar de fumar. De beber, com certeza. Deixei o álcool há quatro anos sem um suspiro. O futebol é o meu vício. O time se renova. No primeiro jogo desta temporada tivemos dois reforços rápidos, dribladores e leves. Cada um com 15 anos de idade. Apenas 40 anos mais do que eu. Voltou também o Tononi, sempre magro, técnico, elegante, silencioso. Na saída, sem razão alguma, falamos de idade. Ele me disse:

– Vou fazer 60.

Fiquei pensando na mágica do tempo e não me pude me conter. Fui aos meus alfarrábios poéticos resgatar uma reflexão esquecida e uma previsão que terá de se cumprir.

Do outro lado

 

Parei na frente do espelho

E olhei a passagem do tempo

Com a lentidão dos meus reflexos

Cansados pelos brancos da idade

Lá fora, um cão latiu de velhice,

Mais uma tosse que um rosnado,

Enquanto um trem soturno

Apitou na curva da infância

Como um fantasma noturno

Capaz de despertar minha alma

Dos medos, remédios e tédios,

Pânico, rivotril e vinis.

Espiei pela janela o Antunes

O padeiro sempre deprimido

Passear o seu cão na calçada

Alheio à fumaça da cidade

Espiralando-se no céu nublado.

Antunes parou de repente

Levou a mão ao rosto

Parecia que enfim pensava.

Em que poderia pensar?

Na vida sem transcendência?

Na sua falta de paciência

Com os pães e os clientes?

Nos seus novos e caros dentes?

Na sua tão rala descendência,

Prole extraviada pelo mundo

Ou nas coxas da Maria Alcinda?

Pensei em mim e no Antunes

Cada um no seu fundo,

Cada um na sua ilha

Sem ao menos uma filha

Para servir de ponte ou abismo.

Cada um no seu universo,

Canto de onde eu cismo

Com a nitidez do espelho.

Assim estamos, Antunes e eu,

Separados só pela nossa rua

E por essa verdadezinha nua

Da transparência obsoleta

Da obsolescência enigmática

E de um quilo de biscoitos

Que não paguei nem apreciei

Num tempo de massas e utopias,

De revoluções e parcas alegrias

Escritas sob medida e encomenda

Para uma novela de televisão.

Antunes teve um câncer

Eu tive um amor de verão

Antunes fez quimioterapia

Eu experimentei a alquimia

Ele já recebe a sua pensão

Eu recusava a aposentadoria

Que confundia com a morte

Não queria ficar como o Antunes

Reduzido a essa (in)dependência

Mas temo a reforma da Previdência.

*

Obsessão

 

Morrerei em Palomas

De onde nunca pude sair

Morrerei em Palomas

Mesmo que seja em Paris

De minhas fugas e ardis

Morrerei quando cair

Na tarde tristonha

O aguaceiro nos campos

Do veterano G. Machado

Onde se canta Vallejo

E se ouve o achado

De um violão insepulto

Ou o choro do bandonion

Soando como um indulto.

Morrerei em Palomas

Ao cair de uma noite

Que nadie quiere cantar

E que não poderei olvidar

Morrerei como canto

Na varanda de casa

Casa verde do pampa

De onde se vê o passado.

 

 

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