Poética do tempo
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– Vou fazer 60.
Fiquei pensando na mágica do tempo e não me pude me conter. Fui aos meus alfarrábios poéticos resgatar uma reflexão esquecida e uma previsão que terá de se cumprir.
Do outro lado
Parei na frente do espelho
E olhei a passagem do tempo
Com a lentidão dos meus reflexos
Cansados pelos brancos da idade
Lá fora, um cão latiu de velhice,
Mais uma tosse que um rosnado,
Enquanto um trem soturno
Apitou na curva da infância
Como um fantasma noturno
Capaz de despertar minha alma
Dos medos, remédios e tédios,
Pânico, rivotril e vinis.
Espiei pela janela o Antunes
O padeiro sempre deprimido
Passear o seu cão na calçada
Alheio à fumaça da cidade
Espiralando-se no céu nublado.
Antunes parou de repente
Levou a mão ao rosto
Parecia que enfim pensava.
Em que poderia pensar?
Na vida sem transcendência?
Na sua falta de paciência
Com os pães e os clientes?
Nos seus novos e caros dentes?
Na sua tão rala descendência,
Prole extraviada pelo mundo
Ou nas coxas da Maria Alcinda?
Pensei em mim e no Antunes
Cada um no seu fundo,
Cada um na sua ilha
Sem ao menos uma filha
Para servir de ponte ou abismo.
Cada um no seu universo,
Canto de onde eu cismo
Com a nitidez do espelho.
Assim estamos, Antunes e eu,
Separados só pela nossa rua
E por essa verdadezinha nua
Da transparência obsoleta
Da obsolescência enigmática
E de um quilo de biscoitos
Que não paguei nem apreciei
Num tempo de massas e utopias,
De revoluções e parcas alegrias
Escritas sob medida e encomenda
Para uma novela de televisão.
Antunes teve um câncer
Eu tive um amor de verão
Antunes fez quimioterapia
Eu experimentei a alquimia
Ele já recebe a sua pensão
Eu recusava a aposentadoria
Que confundia com a morte
Não queria ficar como o Antunes
Reduzido a essa (in)dependência
Mas temo a reforma da Previdência.
*
Obsessão
Morrerei em Palomas
De onde nunca pude sair
Morrerei em Palomas
Mesmo que seja em Paris
De minhas fugas e ardis
Morrerei quando cair
Na tarde tristonha
O aguaceiro nos campos
Do veterano G. Machado
Onde se canta Vallejo
E se ouve o achado
De um violão insepulto
Ou o choro do bandonion
Soando como um indulto.
Morrerei em Palomas
Ao cair de uma noite
Que nadie quiere cantar
E que não poderei olvidar
Morrerei como canto
Na varanda de casa
Casa verde do pampa
De onde se vê o passado.