Por uma literatura social

Por uma literatura social

Michel Houellebecq fala do que dói

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Houve uma época em que o Brasil jogava futebol ofensivo e a Europa marcava. Hoje, os europeus fazem muitos gols. O Brasil joga para não perder. Europeus querem espetáculo. Compram os melhores jogadores do mundo. Mas não é só isso. Tem mentalidade na jogada. Na literatura, também mudou. Muitos brasileiros não entendem o sucesso do francês Michel Houellebecq. Afora o ranço com franceses, a questão é de padrão estético. O momento é dos grandes temas, do texto simples e da ironia. Os brasileiros continuam nos assuntos umbilicais, na frase barroca e na seriedade metafísica. Houellebecq faz sucesso por uma razão muito simples: fala do que dói em cada um, que vai da depressão aos desejos frustrados.

Cada época tem a sua forma literária. Ninguém supera Balzac, Flaubert, Stendhal, os russos e os ingleses no romance do século XIX. Só que o século XX inventou a sua maneira de fazer romances. É pior? É melhor? É diferente. Proust, Joyce e Céline são péssimos escritores do século XIX e gênios do século XX. Fazer romance do século XIX em 2019 seria como copiar a Gioconda perfeitamente e apresentar como obra original. Os escritores brasileiros dividem-se em três categorias: aqueles que ainda querem ressuscitar o realismo do século XIX, aqueles que continuam agarrados ao formalismo da primeira metade do século XX e aqueles que se acham tão geniais a ponto de prescindir de assuntos.

Vou repetir para quem interessar possa: o que conta hoje para boa parte dos leitores são os grandes temas atuais. Houellebecq capturou isso já no seu primeiro livro, “Extensão do domínio da luta”, que tratou da solidão e da sexualidade como “sistema de hierarquia social”, um mundo dividido entre os com sexo (com quem transar) e os sem sexo, a partir de critérios como juventude, beleza, fama, prestígio, dinheiro, ou seja, o “capital simbólico” de cada um. Nos livros seguintes, abordou depressão, desenvolvimento científico capaz de transformar seres humanos em pós-humanos, turismo sexual, consumismo desenfreado, isolamento nas grandes cidades, seitas esotéricas, terrorismo, gurus, fanatismo religioso, islamização da Europa, eutanásia e, em “Serotonina”, a relação entre medicina, indústria farmacêutica, realidade social e a tal da felicidade. 

Enquanto brasileiros fazem frases bonitas ou obscuras, Houellebecq mete os dedos na miséria existencial de cada um. Alguns brasileiros conseguem um pouquinho de sucesso, o chamado sucesso de estima, graças à força das máquinas pelas quais publicam, com amplo espaço nas livrarias e na mídia, o que se traduz em prêmios e até traduções, mas com vendas minúsculas. Na sua época, Sartre falava dos problemas centrais, do aborto à liberdade. Camus fazia o mesmo. O romance de 30 no Brasil esteve conectado à sua realidade. Hoje, o futebol e a literatura brasileira vivem no passado ou atrelados a esquemas ultrapassados que só levam a empates.

Alguns brasileiros roçam um bom tema, mas o estragam com o barroquismo que praticam. Ou com o esnobismo que não conseguem disfarçar. O Brasil precisa de um grande romance com este título: O Caso Intercept.

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Peneira jurídica

 

Ao longo dos anos da Lava Jato, escrevi aqui muitos textos indagando qual era mesmo o papel de Sérgio Moro na operação. Eu o via como um juiz de instrução, atuando junto com o Ministério Público na produção de provas para condenar os acusados. Não era possível separá-lo do procurador Deltan Dallagnol. Vozes pretensamente isenta garantiam que era mera impressão de leigo. Os vazamentos publicados pelo site The Intercept provam agora o contrário. Moro estava de um lado, o da acusação. Alguém dirá que era o lado certo. Acontece que juiz não pode ter lado, salvo o da verdade.

O ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio Mello, já na segunda-feira, em primeira mão no Esfera Pública da Rádio Guaíba, foi cristalino: Sérgio Moro ficava sob suspeição. Elementar. Para a Folha de S. Paulo, o jurista e desembargador aposentado do TJ-SP Walter Maierovitch foi contundente: "A Constituição estabelece uma regra processual de que o juiz tem de ser imparcial. Esse ponto é básico. Se você olhar o processo base, ele é formado por partes: tem o acusador e tem o réu. A supraparte, acima deles, é o juiz, que tem de estar distante para estabelecer uma igualdade entre as partes, de garantia à manifestação e ao contraditório. Se isso de alguma forma sai desse padrão constitucional, entramos no campo de um vício insanável, que é a nulidade". Até criança compreende isso.

O também ministro do STF, Gilmar Mendes, como adiantara o procurador do Ministério Público Celso Três, também no Esfera Pública, esclareceu que prova obtida ilicitamente em favor do acusado pode ser usada. Parece um dado civilizacional que alguém possa usar prova obtida ilegalmente para se inocentar de acusação indevida feita pelo aparelho estatal. O Estado é que não pode se valer de prova ilícita para condenar. Gilmar Mendes, que já foi ídolo dos conservadores, agora é detonado por seu garantismo, nome dado ao respeito às garantias individuais contra os atropelos punitivistas. O que está em jogo? A regra do jogo. Democracia é isso.

O consequencialista ideológico, de esquerda ou direita, não se importa com a forma. Quer condenar. Especialmente quando se trata do adversário. O respeito à forma é que valida o conteúdo. Outro especialista entrevistado pela Folha de S. Paulo, doutor em direito constitucional e Estado Democrático de Direito, Alexandre Bernardino Costa, usou português claro para opinar: "Trata-se de uma ilegalidade completa e patente o fato de o MP conversar com um juiz para encaminhamento de entendimento de provas e investigação. O juiz não tem de fazer isso". Acontece que fez.

Há juristas, claro, que dizem o contrário. Fica evidente a intenção de encobrir os dados. Combater a corrupção é fundamental. Mas garantir o devido processo legal também. Os fins não justificam os meios. Foi isso, contudo, que se admitiu em parte dos procedimentos da Lava Jato. A causa era boa. Podia tudo. Como teria dito George Orwell, jornalismo é publicar tudo aquilo que alguém gostaria de esconder. Parabéns ao site The Intercept. Os prêmios do ano já têm dono. Não foi furo. Foi um rombo.

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Incêndios

 

 

Que estamos fazendo aqui a olhar os mesmos patos selvagens, a contemplar pássaros fazendo a curva, nesta tarde suave depois das chamas? Que estamos fazendo de rosto limpo enquanto a noite avança no tempo sem se preocupar com os anos? Que estamos fazendo com a solidão? Colinas esverdeadas tão distantes, casas de meia-água debruçadas em vão, crianças, trilhos, atalhos, mulheres descalças enquanto o tempo devora os seus filhos.

Que estamos fazendo nesta encruzilhada, sob a luz turva da antiga embarcação? Próximo, corre o rio para o seu destino. Longe, a máquina vermelha resfolega enquanto homens consertam relógios anacrônicos. Que estamos fazendo nesta plantação, entre riachos, juncos e a rebentação? Por trás de nós, expande-se o mundo até se perder depois dos canteiros onde ainda se perfila a cachoeira. Que fazemos enquanto fazemos o que somos? Resignados diante da beleza dos montes, à sombra antiga do arvoredo silencioso, arquivando paisagens, aragens, colheitas, enquanto a velha se deita no esquecimento?

Que estamos fazendo com o que fomos, com essa tristeza tão súbita por dia, essa firmeza petrificada de tanto ser, esses passos em falso sobre as nuvens, enquanto a estrada se desfaz em veredas? Que estamos fazendo aqui contando as chamas, inventariando as labaredas que se inflamam, na aspereza abrupta da trilha de pedra solta, sentindo a brisa sufocada passar tão lenta, enquanto a pressa se corta em mil fragmentos?

Que estamos tentando salvar do vento solene, esse vento que sopra agora do fundo do tempo, trazendo infâncias, aromas, algo do relento, tudo isso que fazia parte do que ainda seria, futuro do pretérito, enquanto as mãos se lavavam na densa imaginação da infância? Que estamos fazendo aqui, mãos soltas ou unidas, tanto faz, enquanto a umidade colore paredes que desmoronam? No rastro do pássaro tonto de sono e embriagado de voo, seguiu o longo aparelho, essa estranha fortaleza nos ares. Tudo então se tornou metálico como uma lembrança. Que estamos fazendo aqui depois dessa última dança?

Estou no meio do mundo

Estou sozinho no fundo

Vendo a margem do rio

Percebo luz na correnteza

Figuro no mapa-múndi

Cavalgo na escuridão

Conto estrelas ao amanhecer

Enquanto pássaros renascem

Para ver o sol na lâmina d’água.

 

 


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