Quando se pode desobedecer?
Situações em que é legítimo negar a norma
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O senador Cristôvão Buarque não se reelegeu.
Ele cometeu um erro básico: pediu votos para a esquerda com ideias de direita.
Agora, recorreu a um argumento inusitado para defender o desrepeito a cláusulas pétreas da Constituição Federal de 1988. Pergunta: o que deveria ter sido feito se a constituição imperial definisse a propriedade de escravos como cláusula pétrea?
O senador Paulino de Sousa considerava a Lei Áurea inconstitucional.
Buarque confunde direito à desobediência de norma ilegítima com direito à rejeição de regra afirmativa criada na plena legitimidade da democracia.
John Locke defendia o direito à resistência contra tiranos: “Se um governo subverte os fins para os quais foi criado e se ofende a lei natural, então pode ser deposto”.
Para ele, nem toda resistência é rebelião.
Rousseau foi mais claro: "Faço contigo uma convenção totalmente em meu proveito, e totalmente em teu prejuízo, a qual hei de observar enquanto quiser, e tudo hás de observar enquanto for de meu agrado”.
A escravidão, mesmo legal, é ilegítima.
Toda norma que a fixe não tem validade moral.
Pode ser desobedecida.
O ativismo jurídico é legítimo em tempos de ilegitimidade, autoritarismo, ditadura, supressão da ideia de liberdade natural inviolável.
Em tempos de democracia plena, o ativismo jurídico não se sustenta. Se a norma não é boa, cabe ao parlamento mudá-la. Esse é o contexto que deve ser interpretado, não a atribuição de sentidos ao texto legal que ele não contempla. Não se pode ser X onde está escrito Y em nome da liberdade ou da necessidade de interpretação. O positivismo foi a norma do século XIX, época de pouca democracia e muita ilegitimidade. O século XX consagrou a interpretação como negação dessa falsificação positivista.
O século XXI só pode confirmar a inviolabilidade da norma escrita, por emanar da vontade negociada dos representantes do povo, contra a subjetividade dos interesses de ocasião e hermenëuticas oportunistas.
A ideia de que não é possível escrever o que se quer, sendo necessário uma interpretação para fazer emergir o verdadeiro sentido, é ilógica.
Por que não se poderia dizer o que se quer cristalinamente?
Se isso é impossível, mais impossível seria capturar um sentido não explicitado. O sentido passaria a ser simplesmente a vontade ocasional da maioria. Nessa ambiguidade total, tudo pode ser o seu contrário.
A ideia de tudo que depende de interpretação é uma "tese".
Pretender que seja consensual e inquestionável coloca-a em contradição.
Se está certa, então está errada.
Pode-se querer uma nova constituição?
Claro.
Como?
A única legitimidade plena só pode ser por meio de um plebiscito para que o povo diga se quer ou não uma nova carta.
A direita negava ouvir o povo para dar novos mandatos a presidentes.
Queria o cumprimento da norma escrita.
A esquerda contestava. Agora, está do outro lado.
O erro de Evo Morales foi consultar o povo e não segui-lo.
O erro de Cristóvão Buarque consiste em confundir legalidade com legitimidade, cláusula pétrea civilizacional com norma legal ilegítima.