"Quatro dias do inferno": notas frias, indenizações, bolsa e corrupção na Revolução Farroupilha

"Quatro dias do inferno": notas frias, indenizações, bolsa e corrupção na Revolução Farroupilha

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Os quatro dias do inferno






Raramente as questões de dinheiro entram nas cartilhas escolares sobre a vida dos heróis de um povo. Antônio Vicente da Fontoura, porém, foi obrigado a cumprir uma última missão depois de vencer seus adversários internos e de costurar a paz com o império. Coube-lhe, embora não fosse o presidente da comissão, distribuir o dinheiro das indenizações. Em 27 de fevereiro de 1845, no seu Diário, nos últimos ajustes para a rendição de Ponche Verde, obtidas certas concessões do governo central, ele já se queixava da lentidão do “pardo Joaquim Pereira de Borba”, inspetor do tesouro, encarregado por Lucas de Oliveira “de tirar a relação dos credores do estado para serem pagos”. Parecia que algo suspeito se preparava e até Caxias desconfiou. Afinal, como observou Fontoura, Borba levou dois meses para realizar um serviço de, no máximo, quatro dias.

A infâmia nunca é modesta. Requer grandes meios. Em carta de 25 de fevereiro de 1847 (Revista do IHGRS, IV trimestre de 1928, p. 538-542) aos demais membros da comissão de indenizações, Antônio Vicente da Fontoura descreveu o que chamou de “os quatro dias do inferno”, período em que, instalado em Porto Alegre, pagou as indenizações. Quando chegou, recebido pelo presidente da província, soube que o dinheiro para a operação, 350 contos, não estava disponível. Passou dias esperando a liberação dessa verba. Em 10 de fevereiro de 1847, enfim, começou a receber os credores e encaminhar os recursos. Um certo Fidélis, de São Gabriel, acusou prontamente a comissão de entregar por fora, através do “mulato Anastácio”, 11 mil patacões a David Canabarro, que, segundo o denunciante, receberia ainda mais 30 mil por papéis de outro, o que hoje se rotularia de “laranja”, um tal de Francisco Maciel de Oliveira.

Fidélis acusava também o presidente da comissão de ser o negociante mais forte de São Gabriel. Embora a redação de Fontoura seja confusa, chamando esse Fidélis de mentiroso, é possível saber que um sujeito teve um lucro de seis contos na indenização, pois muitos haviam adquirido papéis de outros com deságio. A especulação correu solta. Houve quem adquirisse papéis com 50% de desconto. O melhor vem quando a pena de Fontoura se torna mais clara: “Poucos dias depois de se haver retirado o Fidélis, chega o homem mais infame que tem produzido o Rio Grande – Bento Glz da Silva...” Era assim que Fontoura qualificava o chefe farroupilha, “o mais infame”. Bento era sempre o primeiro em tudo. Segundo Fontoura, Bento tratou de espalhar as mesmas denúncias do tal Fidélis, alegando também ser prejudicado pela comissão. Pelo jeito, ele ameaçou o inimigo, transformado em homem do caixa, com palavras destituídas de ambiguidade: “E que devia morrer que ele mesmo seria o primeiro a assassinar-me”. Por certo, bastaria uma vez.

O coronel Marques, herói imperial tido por todos como um homem probo, ciente das reclamações, teria chamado Bento Gonçalves de o “chupador mais sem-vergonha”. É incrível como certas expressões conseguem se manter atuais. Para calar a boca do caudilho, que exigia 10 contos de réis, foram pagas as indenizações de certos indivíduos. Fontoura ressentia-se do fato de que Bento jogava contra ele os inimigos da pacificação, gente que não tinha ficado contente com o entendimento secreto entre Canabarro, por meio de Fontoura, e o império. Houve pressões, jogos de influência, apadrinhamentos, apresentação de papéis pertencentes a terceiros. O valor disponível era muito inferior à soma reclamada pelo conjunto dos “credores”. Bernardo Pires, grande amigo de Domingos José de Almeida, esperava mais de 60 contos. Fontoura deixou os valores maiores para o fim. Não custa lembrar que pela relação de Rodrigo Moreira foram feitos pagamentos secretos também em 1845 e em 1846.

“O dinheiro que recebi e que foi distribuído consta do Imparcial nº 248”, diz Vicente da Fontoura, antes de vituperar mais uma vez contra Bento Gonçalves, que “já tinha recebido os dez contos de réis”, mas queria mais. Como fazia os pagamentos na casa onde estava hospedado, esta se “tornou para mim o verdadeiro inferno, porque sem força moral, e sem força física pela maneira insólita com que a respeito se tem havido o governo, todos ou quase todos se julgavam habilitados para expenderem suas palavras, segundo o grau de educação que os qualificava”. Resumo da epopeia: especulação, mentiras, chantagem, ameaças e insultos. Antônio Vicente da Fontoura, ao final da carta, pedia obviamente “completo sigilo” de tudo.

José Antônio Silva (CV 4888) acusou a comissão de indenizações de fazer negócios particulares “pagando por menos da metade em dinheiro, fazendas e a prazos”. Fontoura respondeu ao pai do falecido: “Que infame e insolente mentira”. Não foram poucas as reclamações desse naipe. Certos historiadores preferem poupar o leitor da catilinária dessa carta de péssima redação e alto teor de denúncia implacável. Antônio Vicente da Fontoura nunca deixou de ser visceral. Quando negociava a paz, enfrentou resistências de Neto, Bento Gonçalves, Almeida e até de João Antônio. No seu Diário, anotou algumas explicações para essas corajosas tentativas de continuar a guerra: “Será crível? Poder-se-ia acreditar que João Antônio é também um desses entes corrompidos que não querem a paz? João Antônio? E não a quer só porque não lhe confirmou o governo imperial a patente de general!” (10 de fevereiro de 1845). Lucas de Oliveira também teria hesitado em apoiar a paz, em certo momento, por medo de não ter seu posto militar reconhecido pelo império. Foi atendido.

Sem qualquer menção às denúncias do tal Fidélis contra a comissão de indenizações, Souza Docca (apud Calvet Fagundes, p. 374) garante que o nome de Canabarro “não figura na lista ignominiosa dos ajustes de contas”. O general de Porongos não teria recebido “um real dos cofres do império, quando se firmava a paz e em seguida a esta”. Não teria se abastardado “nessa sedutora e miserável questão de dinheiro, em que os homens fúteis, fracos e covardes, esquecem que o maior dos tesouros é a probidade, e conseguem meios para um passageiro bem-estar material, em troca da execração eterna dos seus nomes”. Portanto a lista deve mesmo ser vista como ignominiosa? Todos esses adjetivos podem ser aplicados a Bento Gonçalves? E a Domingos José de Almeida? Afinal, foi exatamente o que deles disse mil vezes Antônio Vicente da Fontoura. A defesa de um enterra outros ainda mais.

O pudor de certos historiadores pode atingir níveis inimagináveis. O tenente-coronel Henrique Oscar Wiedersphan, comentando essa carta de Antônio Vicente da Fontoura e seus chiliques na comissão de indenizações, alega que Bento Gonçalves recebeu “apenas 4:800$00” de uma dívida reconhecida de 5:517$696, sendo que Fontoura teria tentado impedir o pagamento ao inimigo. Num acesso de discrição incomensurável o historiador militar prefere abster-se de “transcrever a verdadeira catilinária redigida e apresentada pelo mesmo Antônio Vicente da Fontoura a Manuel José Pereira da Silva e aos demais membros da comissão (...) na qual denomina Bento Gonçalves da Silva como o homem mais infame que tem produzido a província, citando-o cerca de quatro vezes mais em termos acres e até acintosos...” (1980, p. 111). Onde se viu desconfiar dos farroupilhas e insinuar pressões indevidas do presidente da província? Ao menos, Wiedersphan remete o leitor mais persistente para a fonte onde poderá ler a íntegra dessa catilinária da qual preferiu poupá-lo como um jornalista disposto a passar ao largo da notícia para não ser acusado de sensacionalismo.

Alfredo Ferreira Rodrigues, com a autoridade suprema de quem viveu depois dos fatos, tem uma versão mais cândida de tudo: “Os chefes da revolução, os responsáveis por ela, não pensavam em proventos pessoais, cuidaram apenas de garantir os direitos dos seus companheiros de armas e de legalizar os atos praticados durante a república pelas autoridades civis e eclesiásticas. Eles foram os únicos que não tiveram os seus postos reconhecidos, os únicos que nada pediram para si, a não ser o direito de viverem na pátria” (1985, p. 284-85).

Como se viu, documentos são como um céu estrelado: podem exibir diferentes brilhos e outras versões.

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Nunca é demais lembrar esta anotação de Vicente da Fontoura sobre o último ato dos revoltosos: “Hoje reuniu David conselho de oficiais, desde tenente até generais e, expondo as condições da paz, não houve um só voto contra, ficando todos satisfeitíssimos porque tudo era mui diferente do que diziam os sequazes da guerra, que com a cara à banda, foram também aprovando e hoje só cuidam em arrecadar recibos velhos para chuparem o dinheiro que puderem” (Fontoura, 1984, p. 166).

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