Que contrato social queremos?

Que contrato social queremos?

Acordos em tempos extremos

publicidade

      Sabemos que o contrato social é uma ficção. Nunca aconteceu a “reunião” na qual os cidadãos decidiram como se organizariam e governariam. Os atenienses chegaram perto disso, mas excluíam mulheres, estrangeiros e escravos das deliberações. Ainda existem monarquias. Elas podem funcionar e até dar lucro, mas se assentam sobre um princípio duvidoso: o cargo público transmitido por hereditariedade, não por mérito. Essa escolha, porém, pode ser justificada como um voto de longo prazo dado pelos contratantes. O que interessa é isto: que contrato social queremos hoje com a consciência que temos da precariedade das opções (todas têm algum defeito)?

 

      Jean-Jacques Rousseau, o caminhante solitário, nos seus “princípios de direito político”, fixou as bases do “contrato social”. A ambição era enorme como demonstra o seu primeiro parágrafo: “Pretendo indagar se na ordem civil pode haver alguma regra de administração legítima e segura considerando os homens tais como são e as leis tais como podem ser. Tratarei de irmanar sempre nesta indagação o que permite o direito com o que o interesse prescreve, a fim de que a justiça e a utilidade se achem constantemente de acordo”. Parece tão límpido. Lido com calma, contudo, é tão pantanoso. Basta pensar em “os homens tais como são” e “as leis tais como podem ser”.

 

      Como são os homens? Como as leis podem ser? A pandemia do coronavírus coloca em cena essas perguntas e algumas possíveis respostas: os homens são de tal forma que, mesmo em risco, querem viver. Muitos são capazes de tudo para tentar esse “viver”. As leis precisam ser de tal forma que protejam a vida, os meios de sobrevivência e os homens de si mesmos. O nó do problema está previsto nesse famoso primeiro parágrafo de Rousseau, “o que permite o direito com o que o interesse prescreve”. Como “irmanar” legitimidade e interesse? Como conciliar justiça e utilidade? Como unir pluralidades?

      Uma reflexão de Rousseau pode alimentar muitas horas vazias da quarentena: “Como o arquiteto que, antes de construir um edifício, sonda e examina o solo para ver se pode aguentar o peso necessário, o sábio legislador não começa redigindo leis boas por si mesmo, mas antes examina se o povo a que são destinadas está apto para suportá-las”. A cautela parece pertinente. O arquiteto, porém, não altera os seus cálculos, contrariando as possibilidades do solo, só para satisfazer o cliente para quem construirá o edifício. Todo o poder emana do povo. Toda a sabedoria emana de todos? Da maioria? De quem?

      O que está em discussão no momento é um “contrato social” para a gestão da pandemia. Restringir, flexibilizar, abrir, fechar? Como decidir? A ciência tem um papel importante nas decisões. A palavra, final, entretanto, é política. Toda defesa de uma decisão totalmente técnica não deixa de ser uma ilusão ou arrogância tecnocrática. Até o genial Rousseau concluiu que havia objetivos muito vastos para a sua “limitada visualidade”. Enxergamos bem o perigo. Tentamos vislumbrar a salvação. O contrato em construção será coletivo, social e arriscado.


Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895