Que mundo é este? Réquiem para um pitbull

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O poeta Romano perguntou mineiramente: que país é este?

Eu sou obrigado agora a generalizar: que mundo é este?

 

Sai no Jornal Nacional quando homem mata um cão,

Mas, quando um cachorro mata uma criança, não.

 

Cachorro matar criança é um triste acidente,

Culpa do dono, do adestrador, do escambau,

Do pai que não controlou o seu filho,

Da mãe que foi desatenta ou negligente.

 

Até da criança que invadiu o território do bicho,

Obrigando-o, apesar de sempre tão bom e dócil,

A comportar-se como mandam os seus instintos,

Sem poder, por ser bicho, exclamar: sinto!

 

Que mundo é este em que crianças não podem correr

Pelas calçadas, pátios, parques, jardins, escola,

Livres, desavisadas, destemidas, atrás de uma bola,

Pois o vizinho tem o direito de possuir um pitbull?

 

Que mundo é este?

Pior ou melhor?

 

Muito melhor: há mais amor pelos animais.

Muito pior: há desprezo pelos humanos.

“Melhor um cão do que certos homens.“

 

Antes se dizia assim: notícia é homem morder cão.

Está confirmado: notícia é homem matar cachorro.

Que mundo é este, meu Deus, aceito ou corro?

Concedo, contesto, acato ou peço socorro?

 

Que mundo é este, minha gente

Em que tudo virou equivalente,

Cachorro, criança e abacate?

 

A mulher sustenta: cada um com seus sentimentos.

Uns gostam de crianças, outros gostam de cães.

As crianças podem ser barulhentas e chatas,

Os cães podem ser dóceis amigos pulguentos.

 

Que mundo é este?

Em que pessoas recolhem cocô de cachorro nas ruas

E passam, inclusive eu, alheias, indiferentes,

A humanos que chafurdam nas próprias fezes!

 

Vem um e provoca: quer pra ti? Leva pra tua casa.

Vem outro e ataca: melhor um cão que um lixo assim.

Vem mais um e filosofa: isso nunca mais terá fim.

 

Que mundo é este?

Em que os homens apodrecem nessas prisões lotadas

Senhoras passeiam com cachorros em carrinhos de criança

E a gata estonteante beija o seu belo pitbull na boca?

 

Será o mundo hipermoderno, o mundo do ão?

Camionetão, cachorrão, cervejão e cartão?

 

Sem dúvida é um mundo muito mais sensível

Não se aceita com toda razão

que o guarda assassine o cão.

 

Estudantes vão às ruas contra o preconceito,

O animal, enfim, passa a ter status de sujeito.

 

Mas, contra o especismo, termo inventado pelos humanos,

Parece erguer-se contra homens um sentimental banal.

Será porque não se pode adestrar esse bicho sem igual?

 

Que mundo é este em que para amar mais os animais

É preciso amar menos esses seres brutais, os humanos?

Salvo se por trás desse crescente amor pelos bichos

Esteja justamente o ascendente desamor pelos manos!

 

É um mundo novo, o homem caiu do trono

Já não é mais o centro do universo.

Será esse imenso amor pelos bichos uma evolução,

O sinal de uma nova e bela era de compreensão?

 

Ou, tristemente, o incontido sintoma,

A ponta aparente e fria de um perigoso drama?

 

O drama do egoísmo convertido em altruísmo,

Do bicho sujeito tratado como objeto de luxo,

Aquele que eu beijo, arrumo, adoto e puxo?

 

Que mundo é este em que se tornou preconceito,

Estupidez, imbecilidade, ignorância,

Perguntar: por que ter um pitbull?

 

Que mundo é este em que a infância

Deve ser tolhida pelo capricho do adulto

Que deseja ter um cão sem receber insulto?

 

Achar que uma raça pode ser mais agressiva

Agora é visto como uma idiotice ofensiva.

Será o legislador da província de Ontário,

Que proíbe pitbull, ignorante e otário?

 

Que mundo é este?

Como disse o outro: por que não um leão?

Exagero, caricatura, ironia espúria.

 

Que mundo é este em que aquele que chora a morte do bicho

Silencia quando quem morre esse outro bicho, o menino?

Por que não se revolta contra os responsáveis?

Por que não se manifesta contra esse enfadonho destino?

 

Adulterando o poeta, uma coisa é um cão,

Outra ainda é um ser humano. Ou não?

 

Que mundo é este?

Será o mundo cão?

Ou apenas o mundo pet?

 

Ou o mundo da poesia abaixo do rabo do cachorro?

 

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