Que paz naqueles campos

Que paz naqueles campos

Strauss-Kahn: declaração à imprensa em Istambul

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A infância é um país.

Nele só se entra novamente com o passaporte da autenticidade, da memória e da nostalgia.

Minha infância foi dividida entre dois lugares: Palomas e Florentina, nos campos de Santana do Livramento, essa região da fronteira com o Uruguai feita de pampa, de mitos, de lendas e de lembranças que nunca se apagam.

Por que se acendem assim, cada vez mais vivas, a cada dia na medida em que o tempo passa?

Por que se iluminam como relâmpagos quando menos se espera, quando menos espero?

Por que brilham como pirilampos "no pano verde do campo", como dizia o poeta gaudério, quando desço do ônibus em tardes banais, voltando para casa ou indo para o trabalho, ou ganho os céus em aviões que parecem pássaros modernos?

Por que me acompanham como pegadas nas areias de uma praia chamada vida?

Um lugar, se não de mil, ao menos de alguns lindos platôs.

Tantos cerros, Cerros Verdes, cerros que podem todos ser vistos do alto do Cerro de Palomas.

Neste Natal, com meus irmãos Laudes e Jorge, meu cunhado Frutuoso, meus sobrinhos Eduardo, estudante de Direito na PUCRS, que foi nosso fotógrafo nessa aventura de uma tarde, e Arthur, guri mergulhado na felicidade dos seus dez anos de idade, fomos à Florentina, ao campo que foi de meu bisavô França e ao pedaço que ficou com o meu avô Túlio.

Era um pedaço de campo ornado por mata nativa, por um arroio e tendo o cerro de Palomas por trás.

cerro

Imagens que não me abandonam um único dia.

cavalo

O país de minha infância, onde só se andava montado, tinha quatro pontos cardeais: a casa velha, também conhecida como casa do tio Honório; a tapera do tio Manuel; a casa do meu avô, depois casa do tio Ofir, e o altivo Cerro de Palomas.

Era e é um fundo de campo espetacularmente lindo.

A campanha no seu esplendor.

Quando a tarde chegava, nós, a gurizada, começávamos a incomodar:

– Vamos na lagoa. Vamos na picada.

A lagoa era uma aguada cristalina com areia branca no fundo e conchas espalhadas pela borda.

A picada era uma passagem no arroio, depois de uma breve trilha no mato carregado de maracujás e de pitangas.

– Agora não, que o sol está muito alto – diziam minha avó Nema ou minha tia Sueli.

– Ah, vamos, nem tem sol.

O sol estava a pino. Um mormaço de suar em bicas à sombra dos umbus e dos cinamomos.

– Vai te deitar num pelego, na sombra, guri. Mais tarde, nós vamos na lagoa.

Como demorava a passar. E como ia rápido o tempo de banho antes de a noite cair.

O que era melhor: o banho na lagoa ou na picada?

Nunca consegui decidir. É uma questão que ainda me assalta.

Voltamos à lagoa neste sábado. Como diz a música de os Serranos, "eu trago os braços pesados/calejadas mãos vazias/para lavá-las nas frias vertentes do meu passado". Felizmente eu trago os braços leves, na medida do possível, com mãos que, sem estar cheias, não estão vazias, e as vertentes do meu passado, essa lagoa, são cálidas e doces.

Mas "ainda sou menino de passar a vida a jogar pedrita no cristal fulgindo".

Certa melancolia nos invadiu na agora tapera da outrora casa do meu avô ou do meu tio Ofir.

Ali, onde havia tanta vida, onde passamos tantos verões de alegrias, nada mais existe.

Nada mais de laranjeiras, dos pessegueiros e dos velhos umbus.

O grande umbu com seu oco morreu. Há quanto tempo?

Até a sanga onde se lavava roupa sumiu. A natureza é um ser vivo.

Onde foram parar nossos risos, nossas correrias e nossas árvores?

Onde foram parar as casas (a casa velha, a casa nova e o galpão) que tanto amávamos?

As casas, como disse Eliot, vivem e morrem.

Só sobrou uma roda de carreta em torno da qual tiramos fotos.

roda

Não esqueço uma das minhas primeiras férias ali.

Numa manhã de cerração, gritei:

– Tia, o cerro de Palomas sumiu.

Minha tia custou a me convencer de que ele reapareceria.

Foi emocionante ver Arthur, mais uma geração da nossa família, banhar-se na lagoa da nossa infância.

Fomos para a água como guris.

lagoa

Não achamos a trilha até a picada.

Preciso voltar lá para ver a água correr onde banhei meus sonhos de criança.

Sempre quis ter uma chácara em Santana do Livramento.

Descobri que não quero isso.

Quero a lagoa e um pedacinho de terra em torno dela.

O proprietário agora é o Carlão, neto do tio Manuel, que não conheço.

Soube que ele, ainda jovem, quer ser um dia enterrado naqueles campos.

Sabe o que é belo. O nosso belo.

Eu quero que joguem minhas cinzas por ali.

Como quero viver muito ainda, faço um apelo a ele: que me venda a lagoa.

É uma promessa que fiz ao meu avô quando eu tinha 12 anos.

Jurei-lhe que estudaria e voltaria para comprar a lagoa e um pedaço do seu campo.

Não posso deixar de pagar o que prometi.

Agradeço ao Tecão, e ao Lourenço, filho dele, que me deixou dar uma volta no seu bom cavalo.

Ao respirar o ar da minha infância, pensei na frase de Ciro Martins num dos seus livros:

– Que paz naqueles campos!

Que paz eu senti depois desse passeio.

A infância é um país onde para sempre brilham as luzes do passado como estrelas em noites de dormir ao relento. Que paz naqueles campos!

Que paz naqueles tempos!

 

 

 

 

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