Quero viver em Entremontes

Quero viver em Entremontes

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No sertão eu me senti em casa. Experimento cada vez mais a tentação do lugar ideal, retirado, tranquilo, feito de paz, sombra, simplicidade, amor e natureza. Volta e meia, chego a esse lugar em alguma viagem. Desta vez, foi em Entremontes, vilarejo alagoano à beira do rio São Francisco, de frente para Sergipe, a pouco mais de meia hora de barco da cidade de Piranhas. O que me deslumbrou nesse povoado de casinhas coloridas? A imagem da velha senhora bordando à sombra frondosa de uma mangueira. A menina moça mostrando sua beleza na pracinha de filme. Os rapazes jogando conversa fora olhando para as águas do Velho Chico lá embaixo. Os velhos embalando-se em cadeiras.

      Eu me vejo escrevendo livros num lugarzinho assim. Livros para mim ou para meus amigos. Nunca mais para publicar. Nunca mais participar desse jogo enfadonho. Li uma definição tão simples da vida em Entremontes: os homens pescam e plantam; as mulheres bordam. Todos usam o rio para trabalhar, brincar e até namorar. Gostei. Cláudia quer ser bordadeira. Tentarei aprender a pescar. Ou voltarei a plantar. Posso também aprender a bordar. Se isso acontecer, bordaremos, Claudia e eu, à sombra generosa das velhas árvores, em rendendê, labirinto, boa noite e outros pontos mágicos da localidade e desse grande sertão que se espirala como uma renda por vastas áreas de realidade e imaginação.

Penso no tempo escorrendo como as águas do Velho Chico em seus trechos mais vagarosos, penso em nós vendo a velhice avançar, com as mãos sempre mais lentas, bordando a nossa vida numa renda cada vez mais demorada e mais caprichosa, aprendendo com as bordadeiras mais antigas, ouvindo histórias, lendas, esquecendo a pressa de grande parte da nossa vida, tomando banho no rio ao final das tardes até o cansaço chegar de vez e só sobrar a incansável vontade de olhar. Eu me vi ali em figuras que nunca mais verei, em rostos que desconheço, em expressões duras e paradoxalmente suaves que sorriam sem querer. Uma senhora com o rosto trilhado por um mapa da existência me perguntou:

– Precisa de alguma coisa?

– Sim, morar aqui para ser feliz até morrer – eu poderia ter dito.

Contemplei o rio, senti a carícia do sol, afaguei o tronco de uma árvore que espalhava frescor gratuitamente, conversei com uma bordadeira, que me deu a impressão de não conceber a existência de lugar mais perfeito no mundo, guardei na memória natural, a única na qual confio, a fotografia de um barquinho deslizando ao longe entre reflexos irisados e cheguei a escolher a casa onde desejaria morar. Voltamos para Piranhas depois de um dia de aventuras afetivas inesquecíveis. No centro histórico de Piranhas, diante da fileira mais belas de casas típicas coloridas, um homem desdentado nos abordou:

– Me arranje um troco, doutô! Estou com muita fome.

Enquanto eu procurava o dinheiro ele espalhou seu olhar visivelmente irônico sobre tudo o que víamos e disse com ceticismo:

­– Tudo isso agora é só cenário. Nada mais que fachadas.

Dei-lhe o dinheiro. Creio que ele se condoeu:

– Parece que é assim no mundo inteiro – consolou-nos.

Quase que eu rebati com o orgulho da mais nova paixão:

– Menos em Entremontes.

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