Régua brasileira de crimes

Régua brasileira de crimes

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       Certos dias, empurrado pelas injustiças do presente, pelo frio ou pela chuva, ou tudo isso junto, eu releio o que escrevi sobre o passado. Gastei anos pesquisando para conceber e publicar “Raízes do conservadorismo brasileiro, a abolição na imprensa e no imaginário social”. Não o fiz por vaidade. Queria entender como nos tornamos o que somos. Acredito que o passado engendra o presente e deixa marcas duras de apagar. Temos réguas para medir crimes. O maior costuma ser aquele que fere mais privilégios. A desmontagem de situações aberrantes provoca grandes ressentimentos. Surgem discursos hilariantes do tipo: não se pode mais ser heterossexual nem branco.

“No Diário de Notícias, de 13 de maio de 1889, Coelho Neto resumiria com estilo e pontaria certeira: ‘Primeiro aniversário da nossa história política. Começamos a viver, 13 de maio de 1888, antes éramos um povo de bárbaros, no estado primitivo. Depois das naus portuguesas, que descobriram o solo, era mister alguma coisa que descobrisse as almas – um coração encarregou-se disso. O Brasil deixou de ser o presídio dos negros da África para ser um Estado livre, independente da suserania dos oligarcas. 13 de maio é a data inicial da nossa história. Depois do Gênese, o Êxodo’. Num inferno.

O pai de Paulino de Sousa, o Visconde do Uruguai, Paulino José Soares de Sousa, como ministro da Justiça do jovem imperador D. Pedro II, opusera-se ferrenhamente ao Bill Aberdeen, o decreto inglês que dava poderes absolutos a navios britânicos para abordar, vistoriar e apresar navios brasileiros suspeitos de tráfico de escravos, considerando pirataria o crime cometido pelos traficantes. Paulino, o pai, considerava que a Inglaterra cometia grave violação ao direito internacional e praticava o pior dos crimes: o desrespeito à soberania nacional. Os ingleses fleumaticamente entendiam que comprar pessoas, traficá-las e mantê-las em cativeiro era muito mais grave.  Paulino de Sousa, o pai, via na atitude dos ingleses uma demonstração inaceitável de arrogância e de imperialismo. Os ingleses viam na postura brasileira uma prova de iniquidade e de barbárie nacional. Paulino, o pai, pretendia que os ingleses insultavam os brasileiros. Os britânicos compreendiam que o Brasil ofendia toda a humanidade.

Paulino José Soares de Sousa, o pai, aceitava o fim do tráfico, mas não a abolição da escravatura. Paulino José Soares de Sousa, o filho, admitia o fim da escravidão, mas gradualmente e com indenização aos proprietários ‘lesados’. Tal pai, tal filho. Ambos foram derrotados. Ambos caíram atirando. Ambos causaram estragos. A abolição, lenta e gradual, precisou vencê-los durante décadas. Os discursos dos escravagistas fincaram raízes na cultura brasileira. Sempre em nome da legalidade, da ordem, da produção, da produtividade, do direito, da Constituição, das famílias, das fortunas adquiridas dentro da lei, do respeito à propriedade, da paz, da segurança jurídica e alimentar, das instituições e do bem comum.” Nada incomum.

 

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