Reflexos de uma rotina

Reflexos de uma rotina

Crônica sobre um tempo prosaico

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Talvez o mais importante seja o que não se pode capturar.

Ele se levantou e foi até o pátio sobre o qual o último raio de sol perdia terreno para a sombra fria. Pode-se ver, em certos momentos, as oscilações de uma vida inteira nessas pequenas modificações da luz. Claro que é difícil conversar sobre isso, pois as pessoas se retraem como que atingidas por uma mal-estar súbito e incontrolável, embora cada um, em algum momento de solidão, sinta-se profundamente, como numa revelação, afetado por esses contornos irisados do anoitecer, esses matizes de evolução natural tão simples e sutis quanto a sensação de deslocamento.

      É nessas horas que a pessoa se comunica com ela mesma e pensa entender tudo o que viveu e ainda viverá. Então descarta um comentário sobre a chamada realidade dos fatos e agarra-se a um perfume sentido em algum lugar, nalgum momento, que volta como uma sólida percepção do tempo na sua passagem permanente e relativa. É aí, exatamente aí, que a pessoa se pergunta o que fez e o que não fez e se refaz. Ele caminhou até a borda da rua e voltou—se para condensar os reflexos num único feixe de luz. Experimentou uma sensação de segurança indescritível. Um segundo antes, quando a luz cintilara como se refletisse uma hesitação, ele estivera dominado pela incerteza. Agora, avançava para a noite como um navio.

      Quem já não experimentou algo parecido ao voltar para casa, ao retornar à cidade natal ou numa viagem qualquer quando tudo parece em trânsito? De repente, uma frase emerge do silêncio da alma e começa a piscar como um farol na imensidão da existência. Não se ouve o que diz. Sabe-se que é importante. Sabe-se que é melhor não ouvi-la até o fim. Na calçada, moças conversam animadamente. Uma delas repete com entusiasmo:

– Maravilhoso, maravilhoso...

      Ele se encostou no portão – e isso já era extraordinário, essa existência de um portão – e procurou na mente, como quem busca num mapa, o lugar exato onde havia parado de apostar numa perspectiva, aquela que até então fora a sua. Tudo isso tem algo de volátil e até de surreal. Para ele, contudo, é sólido como o ferro da grade que o separava da rua. Sempre acreditara na obrigação de achar a palavra certa para exprimir o que todo mundo sente e não consegue dizer.

Seria isso uma obrigação?
      Há em certos entardeceres uma suavidade que lembra um piano de Chopin, se me faço entender, e alguns reflexos de sol sobre metais que incendeiam balanços antes de tudo se esvair na penumbra daquele instante em que as lâmpadas públicas ainda não iluminam e a escuridão não consegue se impor como um fato consumado sobre as especulações da mente entregue a si mesma. Então o cronista passa como se fosse um coletor de impostos e recolhe o que sobrou da eterna dívida de cada um. Cada pensamento tem um valor. Em seguida, o mais importante se perde como uma ação que naufragou para salvação do investidor. Na manhã seguinte, será preciso recomeçar. O derradeiro clarão, quase tão tênue quanto um lampejo de vontade, apaga qualquer vaidade. Fica no ar um rastro que cada um chama de nostalgia.

*

Nos Estados Unidos, Jair Bolsonaro ofereceu a Amazônia para os americanos.

Disse que há muito a descobrir por lá.

Alcântara também foi ofertada.

Como os americanos são confiáveis, poderão entrar no Brasil sem visto.

Como não somos confiáveis, continuaramos a ter dificuldades para visitar o país de Trump.

 

     


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