Resta (poesia em tempos de Feira do Livro)

Resta (poesia em tempos de Feira do Livro)

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Resta

 

Resta esta minha habilidade estranha

Para tentar copiar o intraduzível.

Esta mania de, nas madrugadas frias,

Regurgitar aos poucos o indizível.

 

Resta esta minha paixão por Vinícius,

Esses extraviados e parcos indícios

De que algo se apagou sem alarde,

Esperança desfeita ao cair da tarde.

 

Resta essa obsessão pela paródia,

Desvelo, delírio, desdém, mixórdia.

Essa imponência solitária e vaga

Diante da impotência crua e cega.

 

Resta esse sobressalto, essa inveja branda,

Essa esquisitice feita de coleções e amores,

Essa angústia quando se aproxima o Natal,

Essa certeza de jamais ter sido normal.

 

Resta essa vontade de abrir o âmago,

Seja lá o que isso for, com as mãos,

As mãos afiadas, porém em conchas,

Como se dizia na infância, tronchas.

 

Resta esse esforço cotidiano e duro

Para permanecer inquieto e puro,

Essa força bruta e grave escoiceando

Dentro de mim como um corcel escuro.

 

Resta essa melancolia suave

Depois do amor e do sexo,

Essa ponta fina de tristeza

Embevecida de tua eterna beleza.

 

Resta essa incapacidade de ter aura,

Essa feiura tocante dos homens comuns,

Essa renovada utopia sem motivação,

Esta alma feita de material inoxidável.

 

Resta essa vontade de sair pela rua,

Como se em cada calçada pisasse na lua,

Descobrindo mundos novos, continentes,

Sorrisos ternos em bocas sem dentes.

 

Sim, resta essa vontade de mudar tudo

Desde que permanecendo eu, mesmo mudo,

Retirante sem futuro em busca do muro

Onde me encostar para curtir a sombra.

 

Resta esse sonho de voltar à infância,

De reencontrar lugares quase sagrados,

Um velho atlas de capaz azul, o sul,

Palavras mágicas como transumância.

 

Resta essa certeza de que tudo não fui,

Salvo aquilo que do imaginário ainda flui:

Oceano, potro, ventania, chuva, incerteza.

 

Resta esse desejo de voltar àquela tarde no cinema

Para, enfim, tardiamente, pegar a tua mão úmida

E te dar aquelo beijo que guardei em meus lábios,

Essa ilusão de que os muitos anos nos fazem sábios.

 

Resta a impressão de nunca ter conjugado o verbo haver,

De jamais ter dominado os regulares e irregulares,

De só ter tido olhos para os bizarros e anômalos,

Tão falsamente canhotos como eu aos domingos à noite.

 

Resta essa sensação de viver sempre sob o açoite

De um desejo violento, impuro e irrefreável,

Desejo de ternura, de cheiro de pêssego, de figos,

De goiaba madura, esse aroma do tempo inefável.

 

Resta esse passo cada vez mais lento,

Embora eu ainda seja bastante jovem,

Esse olhar atento, esse desalento

Por não ter te buscado na escola (nem ter te dado cola).

 

Resta essa depressão sinuosa e recorrente,

Essa tendência doentia para pintar retratos,

Quadros já pintados por grandes talentos

E essa súbita redescoberta da paixão.

 

Paixão gratuita e profunda pela vida.

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