Retorno à terra natal

Retorno à terra natal

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Estive neste sábado, no auditório da Unipampa, em Santana do Livramento, autografando meus três últimos livros: “1964, golpe midiático-civil-militar”, “Diferença e descobrimento – o que é o imaginário?” e “Raízes do conservadorismo brasileiro:  a abolição na imprensa e no imaginário social”. Uma vida. Atendi a um convite do meu velho amigo radialista Antônio Carlos Valente, um dos maiores fãs do cantor Roberto Carlos. De quebra, fiz uma homenagem aos meus amigos negros de infância em Palomas e no beco da Rivadávia e a duas aniversariantes queridas, ambas nascidas em 30 de julho: Santana do Livramento e minha mãe, Eneida.

Na adolescência, vendendo melancia na BR-158, li muitos romances franceses, especialmente de Balzac, Stendhal e Flaubert. Em determinado momento da vida os jovens personagens desses autores precisavam deixar suas cidades e enfrentar Paris. Quando reli esses clássicos em francês entendi melhor a expressão subir a Paris (“monter à Paris”). É uma dessas maneiras de falar de cada cultura e língua. Um francês diz “monter à Paris” para todos que estão ao sul e sobem à capital situada mais ao norte em relação à maior parte do país. Franceses dizem também “descendre dans un hotel” (descer num hotel) para o que designamos como se instalar num hotel. Rastignac, protagonista do “Pai Goriot” de Balzac, enfrentou Paris. Ao final do romance, ele solta uma declaração famosa: “Agora é entre nós dois”.

Entre ele e Paris. Aos 17 anos, eu deixei Santana do Livramento para “monter à Porto Alegre” e “descendre” com meu primo Eleú na pensão da Ondina, em Navegantes, num turbilhão de novidades, de cheiros, de sons e de descobertas. No segundo dia, sob um dos viadutos que levam à ponte Guaíba, um caminhão me deixou coberto de lama. Eu não sabia nem como fazer para lavar minhas roupas e me apavorei. Enlameado da cabeça aos pés, eu me enchi de coragem e, pensando em Rastignac, juro que exclamei com voz chorosa abafada pelo motor dos carros: “Agora é entre nós dois, Porto Alegre”. Fiz isso uma segunda vez dias depois olhando para o lado do Beira-Rio no viaduto da Borges.

O tempo passou. Lá se vão mais de 37 anos. Nesse intervalo, estudei, morei vários anos no exterior, trabalhei em jornais, lecionei em universidades, inclusive de Paris, e publiquei 34 livros, entre os quais uma “trilogia de Palomas”. Quando saí de Livramento, escutava José Mendes e Chico Buarque. Hoje, enquanto escrevo este texto, ouço Charlie Parker. Tenho sempre à mão músicas de José Mendes para os momentos de nostalgia. Chico Buarque faz parte do dia a dia. Volto a Livramento em média duas vezes por ano. Sempre muito rápido, dois dias incompletos. Quando ando pelas ruas de Santana tenho a sensação de procurar pelo que nunca voltará: minha adolescência cheia de sonhos.

Com o que eu sonhava em 1979 enquanto o Brasil tentava sair da ditadura militar? Sonhava em ser ator, jornalista e escritor. Sonhava escrever no Correio do Povo, falar na Rádio Guaíba, brilhar nos palcos e publicar romances cheios de personagens fortes como Rastignac (“Pai Goriot”, Lucien de Rubempré (“Ilusões perdidas”), Julien Sorel (“O vermelho e o negro”) e Frédéric Moreau (“Educação sentimental”). Sonhava em amar uma mulher que fosse companheira de todos os momentos e aventuras, sonhava em conhecer o mundo, sonhava em ser parado na rua por uma pessoa qualquer me pedindo um autógrafo num dos meus livros. Conquistei quase tudo isso: sou colunista do Correio do Povo, apresentador de programa na Rádio Guaíba, encontrei a Cláudia, pessoas me pedem autógrafos nas ruas nos meus livros e continuo viajando em busca dessa certeza de que tudo recomeça a cada dia para sempre.

Só os palcos é que foram esquecidos. Desisti da ideia de ser ator. Nas tantas palestras que dou, muitas vezes em palcos, me sinto ator. Sou o intérprete de mim como quando era o protagonista, em Livramento, no palco do colégio Santa Tereza, do personagem de “Os rebeldes”, peça escrita por mim e que contava com a atuação de meus colegas Praxedes, Vera Lia, Ione e outros cujos nomes se foram com o tempo. Quem não passou por situação semelhante? Que não deixou sua cidade para “monter à Porto Alegre” numa época em que as cidades do interior quase não tinham cursos universitários? Era preciso sair para Santa Maria, Pelotas ou Porto Alegre. Quem não sonhou com fama, dinheiro, amor ou aventuras? Quem não teve medo? Quem não pensou em desistir? Quem não se agarrou ao sonho para aguentar o tranco do real? Quem não se agarrou ao real para não se perder no delírio?

Com o que sonho agora? Em continuar fazendo o que faço, vivendo o que vivo e em ter uma chácara em Santana do Livramento. Cheguei a olhar algumas. Mas me convenci do seguinte: não quero uma chácara. Quero a chácara que foi do meu avô na Florentina. Se o dono um dia quiser vender, não hesite em me procurar. Tenho dinheiro para tanto? Não sei. Um dia, saindo com meu avô, de charrete, da sua chácara, quando eu tinha uns dez anos, eu lhe prometi que estudaria e voltaria para comprar aquele campo. Sonho em novamente ver o céu estrelado e o sol nascer naquelas terras onde vivi alguns dos meus dias mais felizes. Era a felicidade pura, a felicidade luminosa da infância.

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