Saberes e odores: figos maduros

Saberes e odores: figos maduros

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Ontem, ao cair da tarde, de repente, eu senti saudades de Palomas. Uma pontada fina no lado esquerdo do peito. Por que me veio assim, subitamente, esse desejo de voltar ao passado? Palomas é o meu imaginário. O imaginário é a infância perdida. Não foi, porém, uma saudade qualquer, passageira, tênue, frágil. Foi muito mais. Entraram-me pelas narinas cheiros, perfumes, odores doces e sentimentais. Um cheiro de figo maduro, outro de grama molhada, outro ainda de beira de água, beira de sanga, que tem, não sei se o leitor sabe, um odor bem seu. E vieram cores, bichos, árvores, pessoas, lugares.

Senti uma vontade incrível de correr para a velha bergamoteira e ficar lá em cima, num dia ensolarado de inverno, jogando cascas no chão. Às vezes, eu me pergunto: essa infância foi mesmo tão feliz assim? Nem sempre. Lembro-me dos medos que sentia, do horror ao frio, à geada, de buscar as vacas ao cair da tarde para os lados do cemitério ou de procurar cavalos ao amanhecer. Recordo-me de um anoitecer esperando meu pai, que não vinha, a noite descendo, o medo crescendo, a solidão contorcendo-se como uma cobra à espreita. Tudo isso, contudo, dissolve-se rapidamente. É o sol que se impõe. Palomas deixa de ser imaginária para voltar a ser meu imaginário. Torna-se o real o meu desejo de um dia voltar para lá. Por quê? Não sei.

Não faço a menor ideia.

Sei que me vejo bem velho entre cavalos, cachorros, gatos, ovelhas e figos maduros. Idosos, os homens queriam deixar Palomas em busca do conforto e da segurança da cidade. Eu, cada vez mais, sinto vontade de fazer o caminho contrário. Deve ser a ilusão de recuperar a infância perdida. Queria ser a reencarnação do poeta Antônio Machado e publicar um Campos de Palomas feito aos poucos, ao longo dos anos, um verso por dia. A poesia é a última porteira. Nenhuma arte me deslumbra tanto quanto a poesia. Um grande romance, certas vezes, esvai-se diante de um único verso. Palomas para mim é essa poesia. Por que estou falando isso? O que tem o leitor a ver com esses meus devaneios? Por que o aborreço com minha saudade? Também não sei. Falta de assunto não é. Vejo-me à beira do fogo cevando o mate que não tomo.

Que coisa!

Quando sinto essa saudade fininha, busco lembranças que me confortem. Ganhei em Livramento uma foto em que aparece, ao centro, meu bisavô por parte de mãe, vovô França. Nunca tinha visto uma imagem dele. Vejo um homem todo de branco, bigodudo, chapéu elegante, lenço no pescoço, perna cruzada, uma espécie inimaginável de dândi. Em torno dele, minha avô, meus tios-avôs, minhas tias-avós e meu avô Getulino. O que pensaria vovô França da vida? Como terá vivido os seus melhores anos? Quem terá sido seu pai? Será que estou prestes a cair no contos dos fazedores de genealogias? As fotos são como poemas, flagram instantes que me comovem pelo que nunca saberei. Mil desculpas, leitor, não me contive. Estamos juntos há tanto tempo, tenho certeza de que pode me compreender. Fico assim quando sinto cheiro de figos maduros de Palomas. Cada vez sinto mais.

Por que será?

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