Sabores e odores

Sabores e odores

Como conhecer uma sociedade por seus cheiros

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      Um dos livros mais empolgantes que li quando era estudante de antropologia chama-se “Saberes e odores”, do historiador Alain Corbin. Uma história do olfato. O autor meteu o nariz onde devia e mostrou que o real combate ao mau cheiro começou no século XVIII. Antes disso, não havia de fato uma consciência de algum significado encoberto dos odores. A pandemia me fez voltar a esse livro que me espiava da estante com a indiferença tradicional dos volumes autoconfiantes. Durante muito tempo, por incrível que pareça, mau odor não cheirava a problema. A humanidade convivia sem traumas com seus cheiros pútridos.

      As descobertas da química ajudaram a mudar o imaginário dos odores. Corbin descreve o momento em que os centros de aglomeração passaram a ser alvo de políticas de saneamento: “Os locais de amontoamento de pessoas atraem a atenção de higienistas; eles impõem a urgência de uma ação global de regulação. Elabora-se aqui uma estratégia de desodorização dos corpos e do espaço que, meio século mais tarde, será transposta à casa do camponês e à morada do operário. A tenda do soldado, o navio, o hospital e a prisão tornaram-se os laboratórios onde se experiencia a futura desodorização do espaço privado”. Nada foi feito sem trancos, barrancos e muita resistência.

      Um saber sobre os odores exigiu uma dura mudança de mentalidade. Tradições, intuições e preconceitos foram combatidos por conhecimentos sistemáticos resultantes de observação e experimentação. Paris, que fedia como todas as cidades da sua dimensão, mudaria de perspectiva. O caminho, como mostra Corbin, foi longo: “Neste domínio, o essencial continua sendo a emergência de uma nova sensibilidade”. Ela passou por verdadeiras reviravoltas teóricas: “Quanto ao excremento, as certezas vacilam: seu valor terapêutico é posto em xeque nos meios científicos”. A Europa era podre. Na França, a nobreza chafurdava nos seus dejetos. Corbin pinta o quadro pestilento com realismo: “Às vésperas da Revolução, Arthur Young desenha o mapa dos fedores urbanos”. A primavera não era aguardada pelos seus perfumes. No máximo, pelo clima. A intimidade com a putrefação entupia as narinas.

      Chegaria o momento em que os odores domésticos seriam enfrentados: “Dentro da própria esfera do privado, o cheiro familiar se torna também inoportuno. A esse respeito, por volta de 1840, ecoa um novo alarma. A família, cujas virtudes são tão louvadas, esconde perigos: ela exige uma higiene específica. Convém que se insista neste aspecto, pouco observado, das mentalidades pré-pausterianas, que coincide com a emergência, muito estudada, das ansiedades suscitadas pela herança mórbida e pela predisposição”. É incrível como essa história dos odores no ensina sobre a construção dos saberes. A persistência dos “fedores urbanos” teve um grande aliado: os gestores. Recoloco o livro na estante. Ele tem o cheiro da minha juventude. Na primeira vez que o li, em setembro de 1988, eu me perfumava com flores do campo. Na época, queria ser um “sabedor”: saber sobre odor.


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