Sartori e os elefantes – sobre a extinção da FZB

Sartori e os elefantes – sobre a extinção da FZB

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Em uma viagem à África do Sul, um dos professores que subscrevem este texto se deparou, no Parque Kruger, com uma sequência de árvores saudáveis quebradas e derrubadas ao longo do caminho. Curioso com aquela situação inusitada em uma savana com tão poucas árvores perguntou ao guia o que houve e ele respondeu que existem alguns elefantes que derrubam as árvores ao longo do seu caminho. Quando indagou por que, o guia respondeu “porque podem”.
Em quase dois anos de mandato, o governador do Estado do Rio Grande do Sul, José Ivo Sartori, conseguiu propor somente uma política singela de corte de gastos. A proposta visa o desmonte ou inviabilização de serviços públicos do estado, ao invés de aperfeiçoá-los e torná-los mais eficientes e economicamente viáveis.
Uma das ações mais preocupantes é o desmonte dos órgãos estaduais da área ambiental, extremamente importantes na fiscalização e regulação das atividades públicas e privadas. Tais ações não podem ser transferidas para a iniciativa privada ou terceirizadas, pois perderão a isenção necessária à tomada de decisões de interesse geral à comunidade gaúcha, e não de interesse econômico de um grupo privado em particular. Embora as implicações da nova proposta do governo enviada à Assembleia Legislativa sejam muitas, vamos nos deter na análise da proposta da extinção da Fundação Zoobotânica, e em especial do Museu de Ciências Naturais.
A atividade mais conhecida dos Museus de Ciências Naturais pela Sociedade é a exposição de uma parte do seu acervo como meio de transmissão de conhecimento, porém suas atividades extrapolam em muito este serviço.
Em primeiro lugar, Museus de Ciências Naturais possuem acervos científicos gigantescos e de valor inestimável. Estes são representados por coleções biológicas (incluindo fósseis) formadas durante décadas e que são de uso permanente. Estas coleções servem para o estudo da diversidade biológica por cientistas não só da FZB, mas de todo o mundo. Muitas das amostras provêm de áreas já degradadas ou urbanizadas, sendo que os exemplares
preservados nas coleções representam o único registro e material disponível para pesquisa das espécies existentes anteriormente naquelas regiões. Mesmo amostras antigas têm sido recentemente valorizadas pelo desenvolvimento de técnicas modernas de extração e prospecção de DNA antigo, representando amostras únicas e não replicáveis para o conhecimento da diversidade biológica. A coleção do Museu de Ciências Naturais da FZB possui ainda milhares de tipos, que são os exemplares utilizados nas descrições de espécies, insubstituíveis, e que servem de referência permanente destes organismos. Estas coleções, apesar de não terem um valor comercial, custaram milhões de reais para ser construídas, considerando a soma dos valores gastos em hora/trabalho dos pesquisadores, reagentes químicos para a sua conservação, combustível para o deslocamento e diárias de trabalho de campo despendidas gradualmente e ao longo de décadas com recursos de órgãos estaduais e federais de fomento à pesquisa e não advindos do tesouro do estado.
Segundo, coleções científicas não se preservam sozinhas. A preservação destes acervos, compostos de diferentes grupos de organismos (plantas, fungos, insetos, moluscos, crustáceos, peixes, anfíbios, répteis, aves, mamíferos, fósseis diversos, entre outros) depende de curadores especializados em cada área do conhecimento. A FZB possui um quadro técnico qualificado para o atendimento das diferentes coleções, e que ingressou na instituição mediante concurso público para cada uma destas áreas de conhecimento. Surpreendentemente, o Projeto de Lei 246/2016 declara patrimônio ambiental do Estado os acervos do Museu de Ciências Naturais, mas ao mesmo tempo prevê a demissão de todos os seus funcionários. Não há qualquer lógica na proposição das duas medidas em conjunto. A demissão do pessoal responsável pela conservação do acervo evidencia um completo desconhecimento da necessidade de pessoal qualificado e especializado para a sua conservação. E mais, representa a perda do acervo, independentemente do fato de ser listado como “patrimônio ambiental do Estado” no decreto. Não há em qualquer outro órgão do estado pessoal com o nível de qualificação necessário para assumir a função dos curadores de todas estas coleções.
Em terceiro lugar, uma das razões expostas para a extinção da FZB e órgãos associados foi de que ela representa um órgão de pesquisa. Nunca vimos uma justificativa tão absurda para a extinção de um órgão estadual.
Pesquisa representa desenvolvimento, geração de conhecimento e de trabalho. O Museu de Ciências Naturais é referência em pesquisa sobre a riqueza biológica do estado do Rio Grande do Sul. O acervo das coleções científicas só dá retorno à Sociedade quando é objeto de pesquisa. Do contrário, coleções tornam-se apenas depósitos de material – e esta parece ser a visão do governo acerca destes acervos.
Finalmente, o grupo de pesquisa da FZB tem demonstrado liderança junto à comunidade científica gaúcha e exercido um papel fundamental na organização de pesquisadores de diversas instituições para a execução de análises relacionadas às espécies ameaçadas de extinção no estado, associadas ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICM-Bio). A FZB possui atualmente o banco de dados mais completo acerca de espécies ameaçadas no Rio Grande do Sul, informações imprescindíveis para quaisquer propostas de Desenvolvimento Sustentável.
Todos reconhecem que o estado do Rio Grande do Sul encontra-se em uma situação econômica precária, porém existem algumas poucas árvores vicejantes no estado, como encontramos às vezes nas savanas Africanas. As propostas do governador não diferem muito da do elefante que simplesmente quebra ou derruba as árvores no seu caminho, independentemente de serem sadias ou não. É a escolha mais fácil! A proposta de extinção da FZB e do Museu de Ciências Naturais que prestam serviços únicos ao estado é um inexplicável retrocesso. Espera-se que a Assembleia Legislativa avalie adequadamente este decreto e não se junte ao governador como uma manada de elefantes destrutiva que irá tornar mais árido o nosso estado. E são ações sem volta. A construção de uma nova FZB e de um novo Museu levará décadas, e não será vista pela próxima geração.
Assinaram esta carta em 29/11/2016:
1. Dr. Luiz Roberto Malabarba – Professor do Departamento de Zoologia, Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Biologia Animal, UFRGS, Presidente da Sociedade Brasileira de Ictiologia.
2. Dra. Alexandra Mastroberti – Professora do Departamento de Botânica e do Programa de Pós-Graduação em Botânica, UFRGS.
3. Dra. Ana Lígia Lia de Paula Ramos – Professora do Departamento de Biofísica e do Laboratório de Radioanálise.
4. Dr. Andreas Kindel – Professor do Departamento de Ecologia e do Programa de Pós-Graduação em Ecologia, UFRGS.

(seguem-se 22 páginas de assinaturas

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