Sem Elis e como nossos pais

Sem Elis e como nossos pais

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Escuto Elis Regina com a sensação de beber estrelas. I

magino que beber estrelas queime e ilumine ao mesmo tempo. Ainda não tive a sorte de me embriagar de estrelas por via oral. Tenho me contentado com ingestões visuais. O efeito tem sido deslumbrante. Fico horas acendendo e apagando até me perder num rastro de luz. Se fosse viva, Elis Regina faria 70 anos neste mês de março de 2015. Está, portanto, fazendo 70 anos.

Elis vive na atualidade impressionante do seu talento e na impossibilidade de alguém superá-la. É disparado a maior cantora brasileira de todos os tempos. Só Gal Costa pode tentar rivalizar com ela. Elis inspirava-se na majestosa Ângela Maria.

Mas superou a sua influência devorando ritualmente a mestra.

Resumiu a melancolia e a felicidade, por vezes, numa mesma música ou numa única interpretação ousada.

Elis morreu aos 36 anos de idade, situação estranhamente reservada aos gênios. Era ainda uma guria. A guria que saiu do IAPI, em Porto Alegre, para brilhar cantando Bossa Nova, MPB e jazz. Criticou a ditadura militar, foi obrigada a cantar o hino nacional numa cerimônia ao gosto dos milicos, cantou o hino da redemocratização, “O bêbado e a equilibrista”, foi mulher e artista do seu tempo, teve amores devastadores e não resistiu às drogas. Elis tinha personalidade, posição e caráter. Fez da sua voz um instrumento. Conseguia ser sofisticada e popular interpretando os sentimentos mais comuns e universais.

Ousava, arriscava e arrasava.

Alguém disse que eu critico todo mundo. Falso. Só critico os criticáveis, o que já me dá bastante trabalho e muita inimizade, embora eu não me assuste nem negue o ofício. Elis Regina passou longe dessa categoria dos criticáveis. Valha o clichê: era divina. Quando preciso de uma injeção de beleza na veia para resistir à feiura implacável do mundo, que parece aumentar a cada dia como uma mancha de óleo numa baía antes transparente, paro e ouço Elis. Se a situação é grave, tomo uma dose dupla de “Casa no campo”. É como um balão de oxigênio. Respiro. Flutuo. Levito. A arte me salva das mesquinharia do cotidiano cinza. Depois de três certidões negativas e quatro formulários só me resta um disco inteiro de Elis como revigorante.

Fico perplexo com quem critica Elis por ela não ter sido uma porto-alegrense devota ou com quem a julga por ter morrido de overdose. Elis passou a vida nos drogando com seu talento. Eu confesso minha dependência. Se não ouço Elis toda semana, tenho síndrome de abstinência. Uso muita a música de Elis como antídoto contra o sertanejo universitário que ouço em lotações e táxis. Elis, nas suas canções, que eu saiba, nunca falou de mortadela e salamito. Jamais imaginei que salame pudesse identificar uma gata rica e mais sofisticada. Enfim, não é isso que conta. É Elis Regina que canta.

Chico Buarque e Caetano Veloso compõem e cantam. É talento demais. Milton Nascimento e Elis Regina fizeram da interpretação uma arte insuperável. Em termos de voz, só Tim Maia tinha mais. Elis se foi em 19 de janeiro de 1982.

Eu estava abrindo os olhos para a vida.

Triste é saber, que sob muitos aspectos, estamos sem Elis e ainda como nossos pais.

Elis era franca e lúcida. É a melhor maneira de arranjar desafetos. "Eles queriam que eu andasse vestida de prenda ou de bombacha, tomasse chimarrão em vez de uísque e andasse a cavalo no Rio de Janeiro. Não sou cidadã de Porto Alegre, sou cidadã do mundo (...) Não posso perder tempo em ser uma gaúcha quando preciso ser uma brasileira".

Chega de prenda e de bombacha.

Quero embarcar no Aeroporto Elis Regina.

Pode ser o novo, seja onde for, ou o Salgado Filho mesmo.

 

 

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