Sentimentos de Natal

Sentimentos de Natal

Lembranças do passado e do futuro

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      É sabido, desse saber que não se prova, embora tenha gosto e cheiro de goiaba madura, que o imaginário é a infância: a “magificação” de tudo. A crônica, nesse sentido, o da ponta dos dedos, é sempre o fruto maduro (figo, pêssego, amora, “vou contar pro tu pai que tu namora) de um imaginário: o resto de infância que vive na alma do cronista emaranhado nos formulários da idade da razão. Não precisa ser o tempo todo lírica e muito menos melosa, mas tem direito a colheradas de mel e pitadas de caramelo. Natal é realidade imaginária. A criança acorda dentro da gente e sonha com os presentes de cinquenta anos atrás.

      De todos os presentes que ganhei na vida o que nunca esqueci foi o mais simples: uma kombizinha verde de dois centímetros que recebi quando tinha uns cinco anos de idade. Acordei e ela estava em cima dos meus chinelos de dedo. Na época, as havaianas ainda não eram coloridas nem fashion. Também não se falava fashion. Servia moda e todo mundo entendia, especialmente os que da moda nada sabiam. É sabido, desse saber que não se formaliza, apenas brota das profundezas do ser, que o imaginário é algo que se cristalizou na memória como uma felicidade que não se planejou. Não é um trauma. Não se compra em agências de publicidade, não se fabrica em laboratório, emana do simples viver.

      No imaginário há memória e destaque. Algo se cristaliza e ressurge a cada momento como o primeiro beijo, o drible inesquecível, a primeira viagem, o gol de placa que a mídia não poderia ver, a palavra que o coração sussurrou, a poesia que o corpo concebeu no primeiro Natal do amor. O imaginário não depende de lobby. Cada um tem o seu. No imaginário cada um de nós é protagonista, herói e plateia. Montado no meu alazão ainda persigo estrelas e me encanto com pirilampos enquanto a noite se enfeita de brilhos e se povoa de seres invisíveis. A cada Natal revivo o nascimento da esperança, da crença na vida e da solidariedade.

      Eu me revejo menino tocando boiadas de imaginação, acendendo lanternas de brinquedo, pilotando potentes carros de plástico, dominando a bola de couro que esperava e se transformava em presente coletivo, de uso da gurizada da rua nos campinhos das quebradas. O maior presente de Natal a cada ano é voltar a ser criança enquanto o tempo passa. Já pensei em escrever ao Papai Noel pedindo três coisas: uma kombizinha verde de dois centímetros, uma bola de couro, assim se dizia, e a minha infância de volta. Por alguns minutos que seja. O imaginário já me deu o maior presente possível a um adulto quase idoso: a confirmação de que Papai Noel existe. Ou alguém duvida da existência de D. Quixote, dos unicórnios e de todos esses seres que habitam a nossa percepção?

      É Natal e o espírito se ilumina de vontades boas. Pedi ao bom velhinho no WhatsApp um único presente: a vacina contra o coronavírus. Jurei-lhe que não tenho medo de virar jacaré nem de ficar com a voz ainda mais fina. Prometi-lhe que não cultivarei ódios e, se não souber perdoar, que sou pequeno, tentarei esquecer os que me fizeram mal. A felicidade do Natal é estar vivo e querer bem aos que são do bem.


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