Siga o nexo do dinheiro

Siga o nexo do dinheiro

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Pode haver coisa melhor do que sentir o sol morno de junho no rosto em manhãs que mais parecem um quadro impressionista, ler Thomas Carlyle e escutar Sarah Vaughan? Pode. Por que não poderia? Fazer sexo, por exemplo, ouvindo Ella Fitzgerald enquanto a chuva bate na janela é demais. Mas essa trinca – sol, Sarah e Carlyle – é muita boa. Tão boa quanto certas lembranças de infância. Carlyle antecipou a crítica à transformação de tudo em mercadoria. Percebeu que a civilização do vil metal não pouparia qualquer paraíso simbólico.

Carlyle cravou: “O mundo vem se alvoraçando, com espírito tão fabril, para conseguir que cada vez mais trabalho seja feito que acaba não tendo tempo de pensar em dividir os salários; e simplesmente deixa que eles sejam disputados segundo a lei do mais forte, a lei da oferta e demanda, a lei do laissez-faire, e outras leis e desleis sem propósito. Nós chamamos isso sociedade e tratamos de professar abertamente a total separação, o total isolamento. Nossa vida não é ajuda mútua; em vez disso, mascarada sob leis de guerra, denominada “competição justa” e assim por diante, é hostilidade mútua. Em toda parte, esquecemos completamente que o pagamento em dinheiro não é a única forma de relação entre os seres humanos”. Não é ou não era?

O autor de “Passado e presente” ainda tinha ilusões, as ilusões do humanismo. Para ele, o dinheiro “não é único nexo de homem com homem – longe disso! Muito mais profundas que a da oferta e demanda são as leis e obrigações sagradas da própria vida humana”. Não mais. A mercadoria tornou-se medida de todas as coisas e parâmetro de todos os valores. Só importa o que tem valor de troca. Niall Ferguson, que cita Carlyle sem o admirar, explica o sucesso da revolução industrial na Inglaterra, que não era mais sofisticada do que outros países da época, por uma conjunção simples: trabalho humano caro e carvão barato. O último teria de substituir o primeiro. Tudo tem seu nexo.

Onde foram parar os livros desses pensadores que acreditavam no homem como medida de altruísmo? O humanismo, visto agora como antropocentrismo, doença umbilical da condição humana, está fora de moda. Uns defendem a autonomia dos objetos. Outros, a ética dos animais. Só não conseguem se livrar deste paradoxo constrangedor: só o homem pode deliberar sobre o lugar dos animais e dos objetos neste nosso mundo diminuto diante da grandeza do universo. A natureza, claro, pode tudo engolfar. Mas ela não pensa. Nem discute. Apenas age.

O sol que me lambe o rosto enquanto escuto Sarah Vaughan e leio Thomas Carlyle jamais saberá da minha existência – não perderá nada com isso – nem da beleza da voz dessa grande cantora – grande perda para ele. A melancolia da natureza talvez consista em ser tão mais forte do que o minúsculo ser humano, mas incapaz de refletir como ele sobre o aquecimento global. A natureza devora o homem, que dela faz parte. O homem compra e vende a natureza amarrando-a ao nexo do dinheiro. O sol, no lugar do carvão de antes, é capturado como energia. O homem foi um ser que existiu em algum momento do universo.

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