Suspeitos de sempre: Cunha e Sarney

Suspeitos de sempre: Cunha e Sarney

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Eduardo Cunha, o homem do regimento


 

      Durante milênios, a humanidade viveu sem Eduardo Cunha. Não sabia que era feliz. Numa fração de segundos, o Brasil passou a conviver com sua figura incontornável. A teoria da evolução das espécies sofreu um golpe.

Na galeria dos corruptos de estimação da plebe que bebe nos bares e enfrenta o leão, Eduardo Cunha deu um salto quântico e se tornou o símbolo maior da podridão brasileira.

– Sabe a última do Cunha? – é a pergunta que mais resposta encontra.

– Recebia 80% das propinas do esquema da Caixa Federal.

Não há delação sem o nome de Eduardo Cunha, o peemedebista carioca que virou presidente da Câmara dos Deputados numa queda de braço com o governo de Dilma Rousseff e de onde só foi afastado pelo Supremo Tribunal Federal, depois de ter mentido aos pares afirmando não possuir contas bancárias na Suíça – só trust – e de sofrer uma saraivada de acusações de corrupção. Conhecido por saber de cor o regimento da Câmara dos Deputados e por dominar o chamado “baixo clero” da Casa, Cunha e sua mulher Cláudia, ex-apresentadora da Rede Globo, entraram para as páginas das celebridades pelos gastos astronômicos, na Europa, com luxos supérfluos típicos de novo rico.

Cassar Cunha é mais difícil do que ganhar na megassena sozinho dez vezes. Quase todos lhe devem algo. Michel Temer deve-lhe a presidência da República. Jornais afirmam que o PSDB – que se apresentava como campeão da luta contra a roubalheira – desistiu de querer derrubar Cunha em agradecimento aos serviços prestados por ele ao impeachment. Ingênuos, como eu, vez ou outra, perguntam assim:

– O PMDB vai expulsar Eduardo Cunha?

As risadas terminam em silêncio dramático. Rugas vincam as testas mais sérias. Entre os admiradores de Cunha, porém, não faltam elogios à sua capacidade de trabalho. Alguns, menos envergonhados, entre os quais certos deputados gaúchos, garantem que ele foi um grande presidente da Câmara. Eduardo Cunha é hologramático: ele é a parte que está no todo, que está na parte. Em síntese, a imagem acabada do político no imaginário popular: malandro, escorregadio, ardiloso, falso, comprometido, obscuro, oportunista. Faltaria espaço para listar todos os adjetivos que o povo costuma utilizar, na sua riqueza vocabular, para aquinhoar os seus lídimos representantes.

A ciência política está diante de um novo fenômeno: o paradoxo de Cunha. Essa expressão, de agora em diante, define o político atolado na corrupção, crivado de acusações, soterrados pelas provas de seus atos, mas que nega tudo e é sustentado pelos mesmos que fazem retumbantes discursos contra o sistema corrompido. O paradoxo de Cunha cabe numa equação: quanto mais corrupto, mais poderoso; quanto mais corrupto e poderoso, mais protegido pelos críticos da corrupção. Não é de duvidar que, no futuro, Eduardo Cunha seja considerado um herói nacional e ganhe estátua no Planalto Central com uma frase lapidar: o homem que salvou o Brasil da corrupção. Poucos conheceram tão bem o regimento quanto ele. Popularizou o conceito de trust.


José Sarney, o imortal


 

      Vice-rei do Maranhão e do Amapá, onde impera desde tempos coloniais, José Sarney nunca escreveu um livro decente, mas é imortal da Academia Brasileira de Letras. Nada de mais. O jornalista global Merval Pereira, que nunca escreveu um livro, e o cirurgião plástico Ivan Pitangui também o são. A imortalidade é uma página em branco. Na galeria do imaginário popular dos corruptos de estimação da política brasileira, Sarney é, como dizem os publicitários, um case. Já ganhou até uma biografia, escrita pelo jornalista Palmério Dória, intitulada Honoráveis bandidos. Sarney é profissional da política. Presidiu o Brasil sem ter sido eleito. Fez isso pelo PMDB e pela redemocratização, embora fosse natural da Arena e da ditadura.

Em 2010, a revista Maxim, publicada em 27 países, consagrou José Sarney, acompanhado da filha Roseana, como um dos 12 políticos brasileiros mais corruptos. A lista continha também outros estimados caciques sempre presentes em páginas político-policiais: Fernando Collor, Joaquim Roriz, Anthony Garotinho, José Roberto Arruda, Jader Barbalho, José Dirceu, Orestes Quércia, Severino Cavalcante, Valdemar Costa Neto e Renan Calheiros. Família que se corrompe unida, permanece unida e se elege em alianças variadas. Os filhos de Sarney costumam frequentar as mesmas denúncias que o pai. Na presidência do Brasil, Sarney cometeu o maior estelionato eleitoral do país: depois de eleger 22 governadores e obter maioria no Congresso Nacional, cancelou o Plano Cruzado, a alavanca do seu triunfo. Inesquecível.

Os escândalos de corrupção que assolam a família Sarney são rico material para uma autobiografia monumental. Se o patriarca tivesse algum talento literário, poderia ganhar dinheiro licitamente com as suas memórias e justificar tardiamente o seu fardão. Entre as tantas acusações sofridas, José Sarney teria “comprado” votos para garantir um mandato de cinco anos na presidência da República em contraposição ao desejo dos constituintes de garantir-lhe apenas quatro. Três deputados, que mudaram de opinião na hora de votar, confessaram que o fizeram movidos por incentivos irrecusáveis. Aluízio Bezerra (PMDB-AC) trocou seu voto por uma promessa de estrada ligando o Peru ao Acre. Messias Soares (PTR-RJ) aceitou um conselho do hoje ministro de Michel Temer, Moreira Franco, que também se converteu aos cinco anos, e mudou depois de um café com Sarney. Saiu com a promessa de seis mil metros de asfalto para Duque de Caxias.

Acival Gomes (PMDB-SE) cedeu diante da promessa de liberação de verbas para seis projetos do seu Estado. Sarney pode alegar que foi mais republicano do que FHC, só liberando dinheiro para obras. O rol de acusações contra Sarney lembra um daqueles antigos anuários telefônicos: volumoso, difícil de decifrar e rentável. Sarney é, de fato, um imortal: sobreviveu a todos os ataques. Presidiu o Senado três vezes. Mesmo fora do poder, continua mandando. Nada o derruba. Garante ter verdadeira devoção à justiça. Mas é só péssima ficção.

 

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