Tanta noite e tanto dia

Tanta noite e tanto dia

Quarenta anos de estrada

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  Há exatos 40 anos, em 1º de janeiro de 1980, eu botei o pé na estrada. Deixei a bucólica Palomas, em Santana do Livramento, para trás. Ela nunca sairia de mim. Cabelos compridos, pouquíssimo dinheiro na mala, um carregamento de sonhos e a impressionante coragem dos jovens, que ignoram os perigos mais óbvios. Alguns dias antes, em 23 de dezembro, havia comemorado o título do Internacional, campeão invicto do Brasileirão de 1979 e, na mesma data, festejado a formatura no curso de Oficial de Farmácia do chamado Segundo Grau.

      Viramos a noite da formatura na casa do Rudilvan – ele, Praxedes e eu – ouvindo canções tristes como “Jovens tardes de domingo”. Éramos os três guris da turma no Colégio das Freiras. Respectivamente um negro, filho de um ferroviário, um mestiço, filho de um jóquei e cuidador de cavalos no Prado, e um branco, filho de um cabo da Brigada Militar. Rudilvan era muito bom de bola. Começou carreira em Caxias do Sul. Serviu ao Exército durante anos. Praxedes é dentista em Novo Hamburgo. Eu ando por aqui mexendo com palavras.

      Durante anos, estudei uma maneira de sair de Santana do Livramento para ser ator no Rio de Janeiro. Nada encaixava. Pensei em entrar para o Exército ou em ser irmão marista. Meu primo Eleú, hoje médico, então empregado na Redimix, empresa de concreto instalada sob a ponte do Guaíba, me estendeu a mão. Vim morar com ele numa pensão em Navegantes. Depois, no Sarandi e no Jardim Ipiranga. Para sair de Livramento, juntei dinheiro tropeando com meu pai. Um mês antes de embarcar, vendi um terneiro guaxo e duas mil melancias. Botei na mala uma edição de “Casa Grande & Senzala”, da biblioteca do doutor Concesso Cassales, em cuja chácara, cuidada por meu pai, passei belos dias de adolescência lendo clássicos e vendendo frutas na estrada.

      Vim para ser jornalista e escritor. Cheguei a entrar na faculdade de Direito da UFRGS. Descobri a história, a antropologia, a sociologia e, como autodidata, a filosofia. Segui para a França para fazer doutorado em sociologia, onde fui correspondente de jornal. Entrevistei grandes intelectuais, fui aluno de sumidades, trilhei a Europa, senti muito frio, construí amizades eternas, comprei brigas, polemizei, sobrevivi. Na volta da França, cheguei mais anarquista do que nunca no plano ideal, anti-stalinista, socialdemocrata na prática. Bati de frente com os deuses locais. Eu estava por fora.

      Fui ao fundo do poço e retornei com algumas sequelas, lembranças que ainda pesam. Aprendi que havia muita vida inteligente fora do mainstream. Olho para trás, quatro décadas passadas, e me vejo na manhã nascente, caminhando sobre os trilhos, saindo da casa do Rudilvan, cabelo soprado pela brisa, avançando seguro para o futuro sem a menor ideia do que iria encontrar. O que teremos conversado naquela noite? Já não me lembro. Certamente prometemos não nos separar nem desanimar. Era hora de partir na alvorada nostálgica.

Na bagagem – Que marcas ficaram daquele tempo? Uma peça de teatro, “Os rebeldes”, apresentada em Rivera, no Uruguai, em Livramento e no Festival de Teatro da União Gaúcha de Estudantes, em Lajeado, com intervenção da censura, explicação na Polícia Federal e notícia na imprensa da capital. Ficaram também as lembranças dos amores não vividos, mas sentidos, dos planos mirabolantes, do meu primeiro livro, escrito à mão, para sempre perdido, “O vale da morte”, o texto da peça “Os rebeldes” desaparecido, gols ainda vivos na memória.

      Nomes e rostos que ressurgiram neste ano graças às redes sociais. Quantas vezes ouvi “Bela, bela”, com Milton Nascimento, poema de Ferreira Gullar musicado, que diz: “Bela, bela/Mais que bela/Mas como era o nome dela?/Não era Helena, nem Vera/Nem Nara, nem Gabriela/Nem Tereza, nem Maria/Seu nome, seu nome era/Perdeu-se na carne fria/Perdeu-se na confusão/De tanta noite e tanto dia/Perdeu-se na profusão/Das coisas acontecidas”. Eu, porém, sempre soube cada nome, Lia, Ihone, Sílvia, Mariuse, Loiracy, Jane, Megg, Laura. Nenhum se perdeu apesar de tanta noite e tanto dia, tanto tempo escorrido.

      Outro dia, estive numa formatura de ensino médio, em Santa Cruz do Sul, do sobrinho da Cláudia, Arthur, a primeira, creio, depois da minha. Senti uma emoção especial. Lindas meninas e meninos, quase crianças, altivos, solenes, informais, tudo ao mesmo tempo. No dia seguinte, em Caxias do Sul, fui à formatura da minha sobrinha Carol, em medicina. Tão jovens e tão adultos, tão meninos e tão seguros. Éramos crianças naquele final de dezembro de 1979 e não sabíamos disso. Estávamos prestes a cair no mundo e não nos abalávamos. Se eu soubesse tudo que passaria, acho que teria ficado paralisado.

      Olho para frente. Avanço. Vejo bandeiras vermelhas tremulando, meus cabelos esvoaçando, rostos quase infantis radiantes, o frescor da manhã me invadindo a alma, a luz natural ofuscando meus olhos. Uma voz misteriosa me sussurra: “Vai, arrisca, nada tens a perder”.


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