Teatro, Em Cena, Ele não

Teatro, Em Cena, Ele não

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Grande Sertão, a peça

 

      O Porto Alegre em Cena chega aos seus 25 anos.

Um quarto de século. Luciano Alabarse continua comandando um dos festivais de teatro mais importantes do país. Uma das peças de destaque deste ano foi “Grande Sertão: veredas”, montagem dirigida por Bia Lessa, com Caio Blat, Luiza Arraes e vários outros atores de excelente desempenho. No sábado, no Teatro do SESI, elenco e plateia saudaram-se entoando antes do espetáculo um estrondoso “ele não” para Bolsonaro.

Com economia de meios materiais plásticos, a peça, de duas horas e meia de duração, sustenta-se pela recitação do texto altamente visual de Guimarães Rosa e pela interpretação apaixonada dos atores.

O MBL certamente desaprovaria: tem muito nu.

Tudo se ampara nos ruídos do sertão, na bela música de Egberto Gismonti e na evocação verbal de um mundo feito de imagens. Funciona. A peça acentua o aspecto homossexual da relação entre Reinaldo/Diadorim e Riobaldo. Embora isso incomode muitos especialistas hetoronormativos, não faltam leitores qualificados, como o francês Dominique Fernandez, para dizer que a verdadeira questão do romance de Rosa é sobre a homossexualidade.

Se Diadorim amava Riobaldo como a mulher que era e escondia, o jagunço estava encantado com o homem mesmo que assim se dava a ver para ele. Se filosoficamente a questão central é saber se houve pacto com o mal, sociologicamente a pergunta não expressa era outra: dois homens, dois sertanejos, podiam se amar espiritual e carnalmente? Só a homofobia explícita ou implícita pode descartar essa alternativa. Grande Sertão é antes de tudo uma história de amor. Riobaldo estava cada vez mais perto de aceitar que amava um homem. Fernandez nunca mudou de ideia: Guimarães Rosa amarelou com sua virada de novela das nove fazendo ao final Diadorim ser uma mulher. Seria escandaloso demais para o Brasil de 1956. O sertão não estava pronto para tanto.

Capitu traiu ou não Bentinho? Se não traiu, deveria ter traído. Bentinho era uma mala. Riobaldo iria para a rede com Diadorim mesmo que ela fosse apenas Reinaldo? Não fosse a intervenção “normalizadora” do autor, certamente que sim. A lógica da história conduzia para esse desfecho. A perspectiva de que Guimarães contou a história de uma atração tão forte de um homem por uma mulher a ponto de ele pressentir que por trás do suposto homem se escondia uma moça não passa de uma concessão ao imaginário heterossexual dominante. Rosa ousou muito. Mas não tudo. Não queria que seu livro fosse visto como um faroeste gay.

Outra peça fantástica do Porto Alegre em Cena foi “Preto”, dirigida por Márcio Abreu. Escrita por ele, Graça Passô e Nadja Naira, trata da fala pública de uma mulher negra: "Eu não sei falar sobre mim. Mas sei falar sobre o que me atravessa. E me atravessa aquela garota erguendo a carteira da escola no meio da rua. Aquela mulher esbravejando com o policial". O racismo é a pauta da narrativa. O teatro é palco das dores e anseios de cada época. Ao final da peça, no Teatro São Pedro, a plateia em pé gritava "Ele não". Virou rotina.

Faz 25 anos que o Porto Alegre em Cena dá aulas de cidadania pela arte. Parabéns!

 

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