Todos os sentimentos

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Vida de franco-atirador

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 Escreverei um dia, quando estiver pronto, a mais verdadeira crônica de todos os tempos, dos meus tempos, os únicos que contam dentro de um corpo e de uma mente que nem sempre se encontram. Escreverei a crônica de uma vida, aquela que me revelará antes de tudo para mim na solidão da existência que passa sem tribunal de apelação. Escreverei com esta tristeza que me fala todas as noites quando me contemplo na placidez do espelho adormecido e me desconheço nos traços que envelhecem a cada dia. Direi sem rodeios tudo que fui e tudo que não serei. Exporei os meus fantasmas, os meus medos, os meus ressentimentos e os meus desejos mais profundos e superficiais.

      Contarei, ao som de um piano, uma sonata de Beethoven, da minha sensação de espanto, aprendendo a cada gesto a ser pragmático, apelido que se dá ao cinismo necessário à sobrevivência no jogo social. Escreverei, quando o sol lamber a barra da janela e eu me encontrar em pé por um teimoso apego ao amanhecer e aos novos dias com suas óbvias ilusões, a mais autêntica confissão de um homem: direi que sempre soube quando me elogiavam por eu dizer não o que eu pensava, mas o que pensava o autor dos elogios. Anotarei os nomes dos que me traíram, dos que me desprezaram, dos que me trataram condescendentemente. Farei isso para perdoá-los pela estupidez, pela ignorância, pela fraqueza.

      Descreverei em minha crônica, a mais melancólica de todos os tempos, esses meus tempos de deriva no mundo, o itinerário de um homem em busca de si e das suas consolações. Direi o que tive sem esperar e o que esperei e não tive embora me visse como um fruto maduro. Com ironia e humor, que certamente não serão entendidos, confessarei meus acertos, quando me afastei das instâncias oficiais de consagração, e meu erros, quando, vaidoso, tentei obter delas a chancela, certo de estar no ponto, e fui, como sempre, rechaçado. Direi da minha estranha admiração por esses que negam e me negaram enquanto eu, sabendo que só me cabia negá-los, sempre tentei a conciliação, a política dos fracos.

      Sonharei na madrugada as frases que escreverei sem pressa no correr da manhã com a janela escancarada para receber a brisa que refresca a alma e renova a esperança na arte e no existir. Não farei o diário de um perdedor, que não sou, nem o relatório de um acerto de contas. Deixarei os dedos correrem no teclado como imagino que corram os dedos de um pianista, o que eu teria amado ser na vida, sem jamais ter ousado tentar por saber que a música jamais me acolheria. Nos dedos de um desafinado não há ouvidos para a harmonia sublime.

Estética suja – Afirmarei que, como tosco jogador de futebol de sábado à tarde, fiz lindos gols, alguns de letra, por acaso, intuição, oportunismo, oportunidade. Hoje, aposentado das quadras, alimento-me de frases. Nada mais consagrador do que ser despertado num ônibus, onde durmo por me sentir em casa, especialmente depois do almoço, e ouvir uma senhora, uma moça, um ancião, um homem sereno dizer:

– Eu adoro o que o senhor escreve.

      Outro dia, um morador em situação de rua, me interpelou:

– “Solo” é o melhor romance que já li – afirmou.

      Eu segui em frente com passo firme, pisando nas nuvens, numa doce travessia a caminho da imaginação, louvado pelas ruas, ignorado pelos especialistas, tratado com benevolência pelos “eruditos”. Aí, de repente, pensei: quantos medíocres eu já bajulei por causa dessa tendência ao entendimento que me assola e faz de mim uma figura esquisita, doce, ácido, inclassificável? Quantos medalhões superestimados eu já confirmei apenas para não andar sempre na contramão? Quantas vezes silenciei para não me fazer esmagar pelo senso comum, pela opinião dominante, a pressão social que te obriga a ser moderno, a amar aplicativos, a gostar de séries da Netflix, a comprar dispositivos eletrônicos inúteis para não ser anacrônico, a viajar como um louco para “aproveitar” a vida”, pois viajar tornou-se a grande aventura das vidas orientadas pela indústria do turismo?

      Quantos livros empolados, áridos, confusos, obscuros, tive de ler por estarem na moda? Escreverei, quando for possível, a mais sincera crônica de todos os tempos, aquela em que reconhecerei a minha insignificância, de resto igual à da média do mundo, minha estética suja e desafinada, minhas utopias solitárias. Outro dia, fiz uma palestra para catadores. Uma moça, negra, fez um depoimento emocionante. Chorou. Voltei a falar depois dela. Também chorei. Nunca havia chorado numa palestra. Eu sou aquele que se perdeu, que saiu do seu lugar, que voou além do possível, que se arriscou em território alheio, aquele que nunca foi aceito pelos “seus”, o franco-atirador que um dia, para alegria de muitos, será abatido, tendo cometido o crime de desafiar do seu jeito o establishment. Um homem feliz talvez por se dar excessiva importância. Só as ilusões dão estabilidade.


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