Torturáveis e laranjas

Torturáveis e laranjas

Quem cai e quem se segura em tempos de pressão

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Há muitas maneiras de classificar as espécies, inclusive a humana. O argentino Borges citou “certa enciclopédia chinesa intitulada 'Empório celestial de conhecimentos benévolos'”, na qual estaria “escrito que os animais se dividem em 14 categorias: (a) pertencentes ao Imperador (b) embalsamados (c) amestrados (d) leitões (e) sereias (f) fabulosos (g) cães vira-latas (h) os que estão incluídos nesta classificação (i) os que se agitam feito loucos (j) inumeráveis (k) desenhados com um pincel finíssimo de pelo de camelo (l) et cetera (m) os que acabaram de quebrar o vaso (n) os que de longe parecem moscas”. É uma classificação como qualquer outra.

      O antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, que viveu, pesquisou e lecionou no Brasil, colecionou mitos que revelam constantes entre culturas que jamais se cruzaram. Em “O cru e o cozido”, outra forma de classificação, ele inverteu o jogo: “Não pretendemos mostrar como os homens pensam nos mitos, mas como os mitos se pensam nos homens, e à sua revelia. (...) Talvez convenha ir ainda mais longe, abstraindo todo sujeito para considerar que, de certo modo, os mitos se pensam entre si”. Sempre achamos que estamos no comando. E se formos comandados pelas estruturas? Classificamos todo tempo. Classificar é uma forma de separar. Separar é um modo de hierarquizar, isto é, de exercer poder sobre o outro.

      O capitão Segura, personagem de Graham Greene em “Nosso homem em Havana”, dividia os homens em torturáveis e não torturáveis. Acusado de torturar prisioneiros e de ter uma cigarreira forrada com pele humana, Segura era imbatível no jogo de damas e queria se casar com uma linda e caprichosa menina de 17 anos, que o manipulava sem o menor pudor. A sua definição dos que pertencem à “classe torturável é clássica: “Os pobres de meu país... E de qualquer país latino-americano. Os pobres da Europa Central e do Oriente”. A especificidade dos países comunistas seria não fazer “distinções de classe”. Em consequência, “às vezes, torturam pessoas que não deviam”. Segura era categórico: “O mesmo, claro, fez Hitler e escandalizou o mundo. Ninguém se incomoda com o que acontece nas prisões de Lisboa e Caracas, mas Hitler era demasiado promíscuo. Era como se, em seu país, um chofer dormisse com uma dama da nobreza”.

Ficou, claro, não?

      Lisboa evoluiu. Caracas apenas trocou de regime. Cuba mantém o seu. O Brasil aplica rigorosamente a “doutrina Segura”. Só tortura os torturáveis. Lévi-Strauss não tinha o poder de comunicação do Capitão Segura, vulgo Abutre Vermelho, mas sintetizou: “Só podemos escolher entre vários graus de aumento: cada um deles torna visível um nível de organização, cuja verdade é apenas relativa, e exclui, enquanto adotado, a percepção dos outros níveis”. Atingiremos um novo patamar de classificação Segura? Os passíveis de entrar na reforma da Previdência e os não alcançáveis por ela? No Chile, modelo de Paulo Guedes, os militares impuseram o regime de capitalização, mas ficaram de fora do sistema. Eram não torturáveis. Segura ensinava: “É (...) uma questão instintiva”.

*

As notícias do Laranjão chegam a Buenos Aires como suco em caixinha.

A questão é: por que Bebbiano, humilhado, ficará quieto?

O que ganha?

Outra pergunta: por que o ministro do turismo, acusado de cultivar laranjas, continua no cargo?

É mais um sistema de classificação.

Uns ficam, outros despecam como laranja podre.

 


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