Trauma de infância

Trauma de infância

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Como hoje é sábado, permito-me falar de um caso pessoal. Não será, porém, algo leve como seria adequado para um dia de começo de descanso. Quero revelar um trauma de infância. Algo que me incomoda desde os 12 anos de idade. Confesso que minha vida social tem sido marcada por esse acontecimento precoce e inesquecível. Volta e meia, ele aflora na minha mente como uma bolha e aciona meu temperamento destruidor duramente domesticado. Sim, tenho um anseio assassino dentro de mim. Dias desses, falei para um amigo: “Tenho dois dentro de mim”. Ele, polidamente, ponderou:  “Um já seria comprometedor”.

Foi tudo muito rápido, atrás do tanque, no fundo do pátio. Éramos cinco. Não, não é o que o leitor precipitado pode estar pensando. Estávamos lá para um show de calouros. O microfone era um cabo de vassoura. Quando chegou a minha vez de cantar, soltei a voz. Era uma música de Roberto Carlos. Meus concorrentes taparam os ouvidos e começar a uivar, a ganir, a latir. Em seguida, jogaram-se no chão e rolaram de tanto rir. Um deles, o Renato, até se mijou de tanto rir. Um vexame.

– Desafinado – disseram, em coro, por fim.

Tive vontade de matá-los. Meses depois, no coral do colégio, mais de 40 alunos de uniforme, inclusive eu, entoavam uma canção de Nelson Ned (ainda não existia a noção de bullying). O professor regente, depois de um reles minuto de audição, apontou o dedo para o meio do compacto grupo, onde eu tentava me esconder, e fulminou:

– Tu.

– Eu?

– Sai.

– Por quê?

– Desafinado.

Acabou ali a minha carreira de cantor. Tentei tocar clarineta na banda da escola. Havia um primeiro problema: tocar e marchar ao mesmo tempo. Nunca aprendi a marchar. Muito menos a tocar. Soprei, soprei, não saía som. Depois de um tremendo esforço, o instrumento liberou um mugido.

– Sai. Desafinado.

Eu podia ter sido um serial-killer adolescente em Palomas, o primeiro no Brasil. Felizmente me controlei. Anos mais tarde, cobrindo o Festival de Cinema de Berlim, sentei ao lado de Laurie Anderson para ver o “Silêncio dos Inocentes”. O filme me horrorizou tanto que saí da sala a tempo de não matar uma celebridade. Tudo por causa da minha desafinação. Não posso cantar hino nacional nem parabéns a você. Não posso cantar no banheiro. O problema é que adoro cantar. Quando me escapa, alguém exclama:

– Desafinado.

João Gilberto, com sua nova maneira de cantar, com seu “Desafinado”, resolveu o problema de uma geração e abriu um novo horizonte na música brasileira. Não foi o suficiente para mim. Preciso de uma nova revolução. Outra noite, por exemplo, explicávamos a um amigo carioca o “parabéns gaudério”, que ele, estranhamente, apesar do caráter universal dessa criação genuinamente gaúcha, desconhecia. Ah, os cariocas! Embalado por uns copos de vinho chileno, não me contive. Larguei na frente. Cantei.

– Que tu colhas sempre e todo dia...

– É assim? Desafinado desse jeito! – reagiu ele.

Fechei os olhos, respirei fundo, pensei na importância da liberdade e do entendimento entre os homens. Contive-me. Naquele noite, com toda certeza, um carioca escapou com vida. Por um triz. Ufa! Que perigo.

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