Trezentos mil mortos

Trezentos mil mortos

Entre eles dois amigos queridos

publicidade

      Marco Antônio Paim Pereira, o Totô, era de Alegrete. Wellington Pereira era paraibano. Conheci Totô, em Porto Alegre, lá por 1982, quando tínhamos gloriosos vinte anos de idade e muitas utopias. Encontrei Wellington, pela primeira vez, em Paris, por volta de 1998, na Sorbonne. Totô abria cada frase com “che”. Morava no edifício onde hoje Claudia e eu vivemos. Ainda dizemos, diante do elevador, no térreo, o “apartamento do Totô”. Wellington falava manso e escrevia suavemente. Tenho um belo livro dele com dedicatória, “Chanel 19”.
      Totô estudava filosofia, só tomava campari, cozinhava enormes panelas de trigo (nunca mais encontrei alguém que gostasse tanto de trigo), lia avidamente Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. Dizia, de repente, “Che, a Simone tem razão...” Era amigo de infância do meu amigo de vida, o Luís Gomes. Uma época, apaixonou-se pela literatura grandiosa de William Faulkner, da qual falava com desenvoltura tomando campari num bar da André da Rocha. Filósofo de alma, formou-se em direito para ganhar a vida. Amores necessários e amores contingentes. Era homem de ideias e de empreendimentos. Decidiu criar chinchila. Deu-nos muitas aulas sobre esse mamífero que nos era desconhecido.

      Wellington lecionava na Universidade Federal da Paraíba, no departamento de comunicação, onde o encontrei para algumas palestras. Uma vez, ele me levou para conhecer o porto de Cabedelo. No caminho, paramos para visitar o seu pai, que se tinha retirado para uma casa de praia. Havia uma imensa ternura no abraço trocado ao cair da tarde. Meu amigo lia Theodor Adorno, Walter Benjamin e admirava o nosso orientador Michel Maffesoli. A literatura fazia os seus olhos brilharem. Uma conversa entre nós era uma sinfonia de sotaques cantados, o gaúcho e o paraibano. Não impunha o que pensava, embora tivesse convicções e sólidos conhecimentos. Era amigo de outro paraibano maravilhoso que também conheci em Paris, o Claudio Paiva.

      Nos movimentos da vida, Totô voltou para a sua terra natal, onde exerceu a advocacia e arrendou campos para criar gado e enxergar longe ao amanhecer mateando. Gostava de falar de política, continuava a ser um existencialista no pampa, combinávamos um fim de semana na sua “estância”, como falávamos em tom de exagero, que nunca aconteceu. Ainda o vejo com o seu copo de campari, bonachão e risonho, dizendo, “che, o existencialismo era mesmo um humanismo”. Wellington era jornalista de coração e de lides. Tinha a palavra impressa na alma. Os anos foram passando. Eu via o Totô uma vez por ano. O Luís sempre me dava notícias dele. O Wellington eu encontrava nos eventos acadêmicos. A cada encontro com eles, mesmo espaçados, alegria e fortes abraços.

      Totô morreu em Alegrete nesta terça-feira, intubado num hospital de campanha. Deixou esposa e dois filhos. Wellington faleceu no sábado, em João Pessoa. Choram por ele a esposa e uma filha. Totô e Wellington estavam nos 60 anos com gosto pela vida. São duas das 300 mil vítimas de covid-19 neste triste Brasil. Eu gostava muito deles.


Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895