Tudo na teoria de Hollywood

Tudo na teoria de Hollywood

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Pegue uma história real, na medida em que uma história pode ser real quando escrita por um dos seus protagonistas (o filme é baseado no livro de Jane Wilde Hawking, esposa do físico Stephen Hawking por 30 anos). Escolha uma situação singular: uma mente brilhante presa num corpo limitado por uma doença grave e degenerativa, a esclerose lateral amiotrófica. Apresente o herói como um dos maiores gênios de todos os tempos. Mostre-o na busca insana por uma equação “única e elegante” capaz de sintetizar a origem e o fim do tempo. Entregue os papéis principais a dois bons atores: Eddie Redmayne (Hawking) e Felicity Jones (Jane).

Espere que o cozinheiro (diretor) acerte a mão. James Marsh deu sabor ao prato principal.

Não esqueça de acrescentar uma boa pitada de romantismo para temperar os corações incapazes de compreender a “teoria de tudo”, de resto apresentada em doses homeopáticas para não cansar as mentes comuns dos espectadores. Capriche no “lado humano”. Jane casa-se com Hawking já sabendo da sua doença. Vê o homem que ama brilhar intelectualmente e se deteriorar fisicamente.

Assume a dura missão de tocar a casa e a vida dos dois.

Salpique o cansaço natural imposto por tal situação a uma mulher jovem, ponha em cena um terceiro elemento disponível para ajudar e arrebatar o coração da moça, leve ao forno com uma boa dose de culpa e pague para ver.

A plateia comove-se. Foi isso que vi num cinema do Leblon, no Rio de Janeiro. Moçoilas em lágrimas. Senhores com ares de intelectual em dúvida ou em franca discordância. A sobremesa vem com o sabor de refutação: Hawking não é o maior gênio de todos os tempos, embora seja um homem genial, o que não é pouca coisa, não unificou teoria quântica e teoria da relatividade, o que seria uma enormidade, não provou a inexistência dos buracos negros que fizeram a sua fama quando acreditava neles, não provou a inexistência de Deus, não revelou definitivamente a origem do universo e não chegou à sua equação elegante.

É verdade. O detalhe, que pode ser servido com o cafezinho, é que o filme não sugere nada disso. O cardápio é excelente. A receita foi bem executada. A refeição, porém, é frugal. Impossível passar alguma consistência em se tratando de explicar assuntos que exigem demonstração por fórmulas matemáticas. Melhor ficar com a cobertura: paixão, casamento e separação de Stephen e Jane.

Um amor apto a desafiar a matemática, a física, a ciência, a sociedade e a doença, mas não o desejo, esse condimento inesperado e devastador. Na teoria, tudo dá certo por caminhos sinuosos. Na prática, o caldo entorna em linha reta.

“A teoria de tudo” mostra como transformar ingredientes pesados numa cozinha moderna e leve. É a gourmetização da ciência. “Uma breve história do tempo”, de Stephen Hawking”, vendeu mais de dez milhões de exemplares. Raríssimas pessoas são capazes de entender os seus argumentos. Mas a sedução é maior do que a compreensão. A indústria do cinema sabe como deixar no ponto uma história excessivamente calórica. O essencial é dar-lhe um cozimento superficial. Mas com uma casquinha crocante.

Depois, é só servir com design de escultura.

 

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