Tudo se recicla, até a ideologia?

Tudo se recicla, até a ideologia?

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 Caía a tarde feito um viaduto mal calculado quando o homem de boné azul se aproximou.

Ele sorria com dentes perfeitos. Tinha a barba rala:

– Quanta riqueza aí, amigo, não é mesmo? – comentou.

Pensei em falar, não estou vendo. Não quis admitir a minha cegueira. Sorri para que não desconfiasse da minha incapacidade de perceber o óbvio.

– Tudo se recicla – ele disse.

– Como?

– Há muita coisa jogada fora que pode ser reciclada – afirmou.

Segui em frente. O viaduto parecia torto. Olhei para trás antes de atravessar. Havia algo de Van Gogh na pintura do rosto do homem. O viaduto era um esse inclinado. Tudo se recicla. Lembrei de uma reportagem sobre a produção de água potável a partir de esgoto, de fezes. A ciência é capaz de tudo. Ou quase. Salvo de inventar um sentido para a vida. Ou uma fórmula de distribuição da riqueza de maneira que todos no mundo possuam o necessário para viver. No ônibus, comecei a ler o jornal francês “Libération” no celular. Estou viciado em informação. Se não me abasteço a cada 15 minutos, tenho síndrome de abstinência. Tremo e digo bobagens: “o Brasil tem jeito”, “a humanidade é boa” ou “ser feliz é pensar positivo”.

Uma das matérias do “Libération” caiu perfeitamente no quadro sendo pintado: “Urina, minha de ouro ignorada”. É incrível como desconhecemos o que produzimos, às vezes, de melhor e como temos preconceitos de toda ordem. A linha de apoio ao título ensinava: “Nossos excrementos estão cheios de nutrientes essenciais para a produção de nossos alimentos. Em vez de jogá-los fora, deveríamos reciclá-los”. Para que serviriam? Para adubar a terra que produz nossos alimentos em lugar de usar venenos.

Fui lendo e aprendendo: “Nossos excrementos contêm potássio, cálcio, magnésio, ferro, oligoelementos, mas especialmente dois nutrientes que as plantas precisam para crescer: nitrogênio e fósforo. Este último é cada vez mais raro na natureza. Então, por que não devolver ao solo o que tiramos dele, para que ele nos alimente a longo prazo?” Olhei para o riacho Ipiranga, o arroio dilúvio. Quanta riqueza jogada fora! A reportagem estava embasada em pesquisa acadêmica rigorosa e fundamental.

Tive vontade de compartilhar minhas descobertas com a jovem sentada ao meu lado. Contive-me. Tentei decorar este trecho: “Hoje, a agricultura utiliza principalmente fertilizantes sintéticos produzidos a partir de combustíveis fósseis. Se quisermos ter uma operação sustentável, devemos usar os nutrientes ingeridos encontrados nos excrementos". Dados quantitativos: “Nós ingerimos e expelimos 4,5 kg de nitrogênio por pessoa por ano. Em torno de 500 gramas quanto ao fósforo. Temos matéria a recuperar. A maior parte está na urina, tornando-a melhor fonte de fertilizante do que a matéria fecal”. Por que desperdiçamos essa riqueza? No século XIX, a França adubava a terra com excrementos humanos.

Fazer na água é má ideia. Dilui os nutrientes. Os especialistas projetam: “O programa de pesquisa está trabalhando na separação dos excrementos na fonte. Urina de um lado, matéria fecal do outro”.

Tudo se recicla, até a ideologia.

O passado volta embalado de futuro.

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