Um começo de livro

Um começo de livro

publicidade

Conta-se que o caçula rejeitou o próprio nome antes mesmo de saber o significado de um nome, como se houvesse uma misteriosa educação pelo nome, uma pedagogia da identidade, ele que, depois de se impor um nome, faria ecoar seu sobrenome pelo mundo inteiro, como se em cada etapa da sua vida precisasse de um novo batismo, chamando para si, numa solidão orgulhosa e inexplicável, por vezes melancólica e demorada, a tarefa de sentir o momento da virada e de se renomear até alcançar renome. Nascido Brizola, em Cruzinha, pedaço de Carazinho, distrito de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, em 22 de janeiro de 1922, chamado de Itagiba por uma mãe zelosa e aflita, Oniva, que encontrara prazer nessa sonoridade indígena, assim como já havia, ela e o marido José, se deleitado em chamar outros filhos, mais velhos, de Irani e  Paraguassu. Oniva também era um nome que soava estranho e não é de duvidar que tenha havido entre ela e o esposo uma batalha doméstica pelos nomes, como acontece em muitas famílias, tendo outro menino, mais moço do que Paraguassu, recebido o nome de Frutuoso, homenagem, certamente, ao caudilho uruguaio, um dos pais da pátria oriental, e a filha do jovem casal, discretamente, como era de bom tom para as moças daquela época dura, exigente e seca, sido batizada Francisca, que seria somente Quita.

Itagiba não quis ser Itagiba, Frutuoso não se tornou caudilho, como se os nomes não se acomodassem aos seus donos ou devessem, para a realização de um destino, se existe algum, ser alterados. Itagiba preferiu ser Leonel. Seria chamado, décadas depois, de caudilho, amargaria anos de exílio no Uruguai, onde teria uma fazenda, e jamais esqueceria a sorte do pai, tropeiro ligado ao líder maragato Leonel Rocha e ao Partido Libertador, metido nos entreveros da revolução de 1923, aquela que, enfim, acabaria com o longo reinado do ditador positivista Borges de Medeiros. O menino Itagiba era pequeno demais para sentir a tragédia da sua família, mais de cem homens cercando a sua casa, em 11 de outubro desse ano de sangue de 1923, comandados por um certo Pedro Ivo dos Santos, a mando de um tal coronel Tutucha, apelido de Vitor Dumoncel, esperando a chegada de José, conhecido como Beja, quebrando as coisas, prendendo-o, enfim, partindo com ele, indiferentes, dolorosamente indiferentes aos gritos de Oniva, a mulher de nome estranho, a esposa aturdida, a mãe desatinada correndo com o filho mais novo no colo, Itagiba, em prantos, atrás dos invasores. José Brizola seria morto a tiros na beira do rio Jacuizinho, tendo Dumoncel declarado: “Se vierem aqui pedir pelo Beja, não adianta. Já mandei matá-lo”. Esse pai destemido e sacrificado por um “chimango”, caso essa versão seja mesmo a boa, pois existem outras, como é comum nas melhores biografias, não aquelas escritas, mas as vividas, não veria Itagiba, nome que não aprovara, correr pelo pátio da sua casa, de espada de brinquedo na mão, gritando “eu sou Leonel, eu sou Leonel, Leonel”.

Oito décadas depois, Brizola exclamaria:

– Que loucura! Que injustiça! A paz já estava feita. Meu pai voltava para casa já desmobilizado. Que maldade!

(abertura de Vozes da Legalidade. Publicado aqui em homenagem ao mês de agosto, o mês, 50 anos atrás, de um salto na história brasileira

Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895