Um jornalista nas últimas pegadas de Jango

Um jornalista nas últimas pegadas de Jango

publicidade

Nelson Adams Filho é jornalista formado pela Famecos. Vive em Torres.

Grandes reportagens fazem parte da sua trajetória.

Ele me conta por e-mail: "Em 1982, sob o comando do saudoso jornalista Tito Tajes, à época chefe da sucursal de O Globo em Porto Alegre, estive em Mercedes e Curuzú Cuatiá, Argentina, com os fotógrafos Dudu Vieira da Cunha e Barú Derquin, para investigar denúncias do militar (?!) uruguaio Enrique Foch Dias Vasquez de que o presidente Jango havia sido assassinado, vítima de um complô".

Sente-se a vibração de quem esteve no palco dos acontecimentos: "Tito Tajes teve o faro jornalístico de mandar averiguar a denúncia chegada via Uruguaiana por um correspondente de O Globo (cujo nome não recordo). Lá fomos nós (eu, Dudu e depois Barú) durante um mês investigar o fato. Às custas de O Globo, que vendeu muito jornal à época e trouxe o fato pela primeira vez. Fomos os primeiros jornalistas a visitar as fazendas de Jango. Fotografamos tudo, inclusive o Fórum de Mercedes e o juiz que mantinha o caso sob sigilo de Justiça. Entrevistei amigos de Jango em Uruguaiana; Rafael Natalle Ferrari, o médico pediatra (falecido) que forneceu o atestado de infarto do miocárdio. Tive com o atestado em minhas mãos, frente a um Natalle muito nervoso, assustado, com os olhos arregalados, mas convicto de que fora um infarto. “O peito apresentava uma mancha arroxeada do lado esquerdo, típica do quadro de infarto”, explicou-me ele. Não houve outro exame. Era um dos poucos médicos na cidade. Entrevistei Enrique Bonilla, o “papa-defunto” que preparou o corpo de Jango e o colocou num caixão lacrado, como ordenara o Comando Militar à época, para que ele pudesse entrar no Brasil. Também estava nervoso, suava as bicas".

Os detalhes surgem em profusão: "Falei com os administradores das fazendas; com as pessoas que partilhavam a vida com Jango, inclusive as prostitutas dos bordéis que ele frequentava".

Dá uma informação desconcertante: "Vasculhamos Mercedes e Curuzú Cuatiá de cima a baixo e descobrimos, nesses depoimentos, que Jango entrava e saia do Brasil, na área fronteiriça, a hora que queria. Costumava ir a São Borja e Uruguaiana com frequência, numa atitude típica de quem habita área de fronteira e está com um pé cá, outro acolá".

Lembra de detalhes pitorescos: "Isso seis anos após sua morte. Fomos os primeiros jornalistas a visitar os locais que Jango frequentava. Ainda vimos (e fotografamos) vivo um enorme cachorro mestiço preto que era seu companheiro. Mescla de pastor alemão com cachorro nativo. O quarto que Getúlio Vargas havia dado a Jango, seu herdeiro trabalhista".

Não esquece a rotina da produção e os colegas: "À época, o colega Flávio Porcelo, também sob o comando de Tito Tajes, “suitava” as informações que mandávamos de lá entrevistando em Porto Alegre o bioquímico Danilo Groff, amigo de Jango e Brizola (depois foi trabalhar com Brizola no governo do Rio), Maria Teresa (hospedada no Plaza São Rafael) e Jair Krischke, então presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (começava-se a falar em “Direitos Humanos” no Conesul). O Movimento ficava no bazar de Jair na Voluntários da Pátria, numa mesa ao fundo, depois de se passar por panelas, louças, talheres e outros utensílios domésticos ali expostos. No Rio de Janeiro os repórteres de O Globo entrevistavam Leonel Brizola que levantava pela primeira vez publicamente a suspeita de que Jango havia sido "envenenado"; ou os remédios trocados (tese de Danilo Groff). De vasodilatador (ele era cardiopata, como sabes) para vasoconstritor. A suspeita caia em cima de um filho de criação de Jango, jamais citado em outras reportagens ou investigações sobre o caso".

O jornalista conheceu personagens. E personagens havia: Alfredito, Peruano, Foch, Cláudio Braga, Vieira, donos de funerária, médicos e tantos outros, muitos dos quais perambulariam pelas páginas lunáticas de "El crimen perfecto", do aventureiro Foch.

Recorda o desfecho: "Enrique Foch Dias Vasquez queria dinheiro para contar a trama. Disse-me que chegou a ela reunindo fatos e informações. “É um colar de informações”, repetia. O Globo não quis pagar-lhe e a ação tramitou em sigilo no Fórum de Mercedes".

Uma experiência singular. Memórias de um repórter.

 

 

Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895