Uma estranha vingança

Uma estranha vingança

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Corpo a corpo

Jurou vingança e cumpriu.
Bernardo fora expulso da comunidade quando tinha 15 anos por ser homossexual. Criança, acostumara-se com os abusos dos grandes. Descobriu que gostava daquilo. Amava o cheiro forte dos homens. Adorava entregar-se em estábulos ou à beira do rio. Adolescente, continuara a deitar-se aqui e ali com desgarrados descidos do trem. Não sentiu medo ao partir. Sentia que encontraria o seu caminho, uma longa estrada a ser pavimentada. Prometia-se voltar para um acerto de contas. Levou 37 anos para retornar. Encontrou tudo praticamente intocado, a mesma apatia, o mesmo ar pesado, o mesmo horário do trem. O tempo havia passado. As pessoas, não. Claro que estavam envelhecidas. Mas eram as mesmas, apenas um pouco esbranquiçadas. Reconheceu cada uma delas. Não foi reconhecido.
Voltava gordo e rico.
Conversou com cada morador. A crise era total. Apesar da aparência de imutabilidade, tudo estava em decadência. Passava as tardes no único café ainda aberto relendo sugestivamente Durrenmatt. A velha senhora voltara para vingar-se do homem que a abandonara. Não tardara até que ele lhe fosse designado. Bernardo tinha horror de sangue. A sua vingança não seria de morte. Fez publicidade da sua riqueza. Mostrou que poderia salvar a comunidade da catástrofe. Pediu aos homens que o haviam expulsado que lhe descrevessem minuciosamente as causas do descalabro, as dimensões dos prejuízos e o montante necessário para a salvação. Enquanto preparava a sua vingança, distribuiu comida, roupas e presentes para as mulheres mais jovens. Revelou um bom gosto extremo na escolha dos vestidos ou das bolsas que entregou. Ao receber elogios, contudo, sempre repetiu uma frase:
“Eu sou capaz de gestos de muito mau gosto”.
Aos poucos, em meio às conversas sobre a crise, falou de outros assuntos: jogos, viagens e homossexualismo. A reação foi imediata. Os homens disseram que ser “puto” era abjeto. Alguns simularam ânsia de vômito. Bernardo os questionou sobre o casamento gay. Declararam-se horrorizados. Passaram-se mais alguns dias. A crise atingiu o seu ponto máximo. Vieram todos os notáveis do lugar pedir a Bernardo que os salvasse. Encontraram-no lendo Guy de Maupassant e ouvindo Chico Buarque. O estranho pareceu-lhes bizarro. Depois de um longo silêncio, em que parecia calcular, Bernardo disse:
“Eu sou gay. Alguém quer ir para a cama comigo?”
Começar a gritar. Insultaram-no. Exigiram que fosse embora.
Bernardo permaneceu impassível. Os seus olhos azuis fulminavam cada rosto com a mesma frieza triste.
“Salvarei da crise quem for para a cama comigo.”
Horrorizaram-se com a chantagem. Ameaçaram agredi-lo. Por fim, dispersaram-se soltando impropérios. À noite, apedrejaram-lhe a casa e picharam as paredes com palavras infames. Na madrugada, porém, um vulto entrou no prédio pela porta dos fundos. Na tarde seguinte, um caminhão despejou presentes em frente à residência de um dos homens mais conhecidos do lugar. A crise econômica para ele chegara ao fim. Começava, no entanto, outra crise. A comunidade o rejeitou. Apedrejaram-lhe a casa e, durante a noite, picharam as suas paredes com palavras infames. Assim foi durante 17 dias. Todas as madrugadas um vulto se esgueirava pela porta dos fundos da moradia de Bernardo. Todas as tardes um caminhão despejava presentes e um cheque em frente à residência de um importante da comunidade. Faltava um. Bernardo propôs-lhe casamento. Preparou-se a festa. O escolhido vestiu sua roupa de domingo. Bernardo o abandonou no altar.

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