Uma imagem em tempos sombrios
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Sentava-se dentro do seu Fusca todas as tardes chovesse ou fizesse sol, ventasse ou não, fizesse calor ou frio. O carro estava no mesmo lugar havia um par de anos. Começava a criar raízes. Era um fusca verde cuja pintura parecia esmaecida com o tempo ou com a opacidade dos olhares que atraía. O homem ficava diante do volante com as mãos escondidas, cruzadas sobre o colo. Já não chamava a atenção dos vizinhos. Em que pensava? O que buscava? O que fazia? Que sentia?
Especulações eram permitidas desde que não fossem emitidas em voz alta: havia sido caminhoneiro na idade da razão e sonhava, na imobilidade do carro que lhe restava, com as estradas sem fim e os gestos desarrazoados que praticara por este mundo de Deus; fora um contrabandista de renome, apelidado pelos clientes de Passante, e vivia do seu nome, das suas lembranças e da sua necessidade de esquecimento; cometera um crime hediondo, que nunca conseguia expiar, e por isso passava o pouco de vida que lhe restava espiando o metro de chão onde tudo acontecera; recordava o grande amor da sua vida.
Outra vertente especulativa dava-lhe uma biografia mais lendária: lutara na Bolívia com Che Guevara e vira seu corpo transformado para a foto que correria o mundo; fora tupamaro, companheiro de lutas de Pepe Mujica, e comprometera-se, para ganhar a liberdade, a nunca mais se manifestar na esfera pública; contava os mortos dos seus anos de guerrilha, sequestros a embaixadores, atentados a bancos e operações contra a burguesia. Não passava disso. Ninguém parecia disposto a imaginar algo diferente ou verossímil.
– Está desempregado – era o máximo que alguém arriscava.
– Está aposentado – corrigia um outro ou outro menos imaginoso.
Como era esse homem? Rosto emaciado, beirando os 70 anos, olhos miúdos muito escuros, lábios grossos, bigode ralo, testa larga, papada farta. A aparência nada comunicava sobre o seu mistério. Ficava até o cair da noite no seu fusca. Não passava pela cabeça de uma única pessoa bater no vidro do fusca e disparar uma pergunta certeira:
– Que faz aí dentro?
Por que alguém violaria a sua privacidade? Por que alguém se permitiria interromper o seu silêncio? A lei máxima do lugar era simples como a vida de todos os dias: viver e deixar viver. De toda maneira, mesmo que alguém se atrevesse, a resposta provavelmente seria um solene silêncio. Nada o afetava. Nem mesmo os temporais. Assim o homem do fusca se extinguiu. Pelos cálculos de um vizinho, que se sentava no sofá da sua sala todos os dias, do começo da tarde ao anoitecer, para contemplar a rua, sem chamar a atenção ou provocar especulações de qualquer ordem, ele teria passado 18 anos, seis meses e 12 dias, imóvel ao volante do seu fusca verde água também imóvel.
Depois da sua morte, correu um boato forte, logo descartado pelos mais exigentes em matéria de verossimilhança: ele passava as tardes escutando notícias e música. Ninguém acreditou. O fusca ainda está no mesmo lugar. É verdade que roubaram o aparelho de rádio. Dizem que ele escutava notícias temendo a ascensão do fascismo no Brasil