Uma pandorga no céu

Uma pandorga no céu

Uma criança feliz

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    João achava que crônica era coisa de desocupado. Não via serventia em textos tão cheios de subjetividade e de imagens. Havia dias em que implicava com a subjetividade. Em outros, com as imagens. Para ele, na sua franqueza ingênua, era questão de contabilidade. Como assim? Contabilidade da razão e da emoção. O saldo não o convencia.

– Que desperdício de palavras!
    O seu credo era a utilidade. A ideia de que crônicas servissem para distrair, emocionar, fazer rir, enternecer, não o persuadia:
– Vai cortar uma lenha – dizia.
    Não que ele cortasse lenha. Vivia na cidade. Guardava, porém, essa imagem da sua adolescência camponesa. Não admitia que fosse uma imagem. Se contrariado, defendia que era literal. João era teimoso. Isso até o dia em que chegou arrepiado. Desandou a falar e nada fazia sentido. Não era de negócios nem de futebol – única distração que considerava aceitável – que falava. Parecia uma crônica vomitada.
– Que crônica, que nada! Estou falando muito sério.
    Enquanto não o ouviram, com a mais silenciosa atenção, não se acalmou. Então começou a contar com imagens coloridas e ternas. Era de perder o fôlego. As palavras brotavam da sua boca aos saltos. Um pouco mais e seria possível colher palavras como se fossem pérolas ou frutas. Imagens, imagens, metáforas. Essa era a única maneira de fazê-lo ter algum respeito pelas imagens: chamá-las de metáforas. Não que preferisse essa palavra – ao contrário, abominava-a. Então dizia:
– Fico com imagens.
    Esquecido de tudo que já havia dito contra as crônicas, que eu defendia como sendo o sal da vida, embora a imagem fosse gasta, João comportava-se cada vez mais como um cronista sem a consciência da crônica. Ora, direi, a crônica é o tempero que nos faz suportar os remédios amargos. Não tive gatos, não dividi com ninguém o legado da nossa solidão. Aí já é um contrabando que só atrasa a crônica do João. – Ela não voltou mais – disse João.
– Ela quem, rapaz?
– O menino.
    Até então não havia menino na história. Nem havia história. Somente um jorro de palavras e imagens. Sempre elas. Pausa: as imagens existem para colorir os buracos da existência. As crônicas, por seu turno, servem para colecionar imagens e buracos coloridos fazendo da vida algo menos trivial. Então João retomou a palavra, que não havia, de fato, entregue e com olhos brilhantes, ou não seriam olhos de cronista, mesmo involuntário, soltou a frase que ainda ressoa:
– O menino foi embora pendurado na pandorga.
    Eram outros tempos. Havia meninos, pandorgas, meninos soltando pandorgas e movimentos estranhos dos barcos. A história ficou na mente de quem a ouviu. Volta e meia, sem mais nem menos, alguém diz:
– Foi no dia em que João virou cronista.
– Que dia foi esse? – pergunta alguém que não conhece a história.
– O dia em que o menino foi embora pendurado na pandorga.
    Dia da criança.

 


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