Uma senhora com arte

Uma senhora com arte

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Dona Eva Shoper


 

      Há pessoas que a gente vai admirando cada vez mais ao longo dos anos.

Dona Eva Sopher, que faleceu nesta quarta-feira, aos 94 anos de idade, é uma dessas figuras admiráveis que, aos poucos, transformou-se numa entidade, numa instituição, num monumento. Cada um guarda de alguém um tipo de imagem. Aqueles que conviveram com Dona Eva, guardiã do Theatro São Pedro por tantas décadas, certamente colecionam conversas, confidências, detalhes, comentários, afetos e suas paixões.

Eu guardo essa imagem compartilhada por todos da senhora cumprimentado os espectadores para mais um espetáculo como quem recebe convidados em casa. Havia uma deferência naquela maneira de acolher, algo formal para a maioria, como eu, na sua rigidez dita germânica, mas elegante, como que dando ao ato de ir ver uma peça uma dignidade maior, essa dignidade que o teatro tem e merece. Dona Eva viveu para a cultura e especialmente para o São Pedro. Atravessou governos e crises, mudanças de paradigmas e tempestades, falta de dinheiro para cultura e transformações tecnológicas, comportamentais e sociais.

Esteve sempre lá, altiva, ereta, firme, solene e forte na sua missão. Eu a via, às vezes, como uma personagem borgiana. Nunca falei com ela. No máximo, apertei a mão dela. No começo, jovem repórter, ela me assustava um pouco. Depois, mero espectador, desapareci feliz na multidão. Fui, no entanto, admirando sempre mais a sua postura, o seu amor pelo teatro, a sua abertura para tantas diferenças, a sua capacidade de dar espaço a muitos. Conversei com muitos artistas de todos os horizontes estéticos e encontrei neles, em geral, admiração e agradecimento pela acolhida que sempre receberam de Dona Eva Sopher.

Eva Sopher deixa um legado de amor à arte. Manteve o São Pedro como um brinco, uma pérola, o clichê que a gente quiser, pois será verdade. O nome dela passou a se confundir com o do teatro. Quanto governador ou secretário de cultura terá pensado nalgum momento insano em mudar tudo, em tirá-la, em rejuvenescer a gestão da casa!? Não sei. Imagino, conjecturo. Nenhum felizmente se atreveu a fazer. Teria enfrentado uma avalancha de críticas. Sofreria um impeachment. Dona Eva, uma senhora com arte, reinou soberana pela sua competência.

Quantas peças terá visto na sua longa existência? Com quantos grandes artistas terá convivido, conversado, compartilhado sua devoção ao teatro? Quantas vezes terá desanimado diante das dificuldades de manter o teatro vivo num tempo de tantas concorrências leais ou desleais? Terá ouvido com certeza reclamações, queixas, insatisfações. Quem nunca?

Certo é que contornou obstáculos, venceu barreiras, driblou dificuldades e envelheceu ao leme como um patrimônio gaúcho.

Ficará para sempre essa imagem quando formos ao São Pedro. Veremos a figura de Dona Eva logo depois dos que recebem os tíquetes de entrada. Ela ficava ali aparentemente distante com seus radares ligados. Eis uma pessoa que poderia realmente parafrasear Flaubert dizendo: “O Teatro São Pedro sou eu”. A plateia explode: bravo! Bravo!

 

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