Vida de escritor mal dito

Vida de escritor mal dito

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De 2004 para cá, eu publiquei 13 novos livros: “Getúlio” (romance, Record), “Para homens na crise do 40 e mulheres interessadas em compreendê-los” (crônicas, Sulina), “Mal dito” (aforismos, Bipolar), “Aprender a (vi)ver” (crônicas, Record), “Antes do túnel: uma história pessoal do Bom Fim” (memórias, Editora da Cidade), Solo (romance, Record), “O que pesquisar quer dizer: como fazer textos acadêmicos sem medo da Capes e da ABNT” (Sulina), “História regional da infâmia: o destino dos negros farrapos e outras iniquidades brasileiras” (História, L&PM), “1930: águas da revolução” (romance histórico, Record). “Vozes da Legalidade: política e imaginário na era do rádio” (Sulina), “Um escritor no fim do mundo: viagem com Michel Houellebecq à Patagônia (Record), “A sociedade midiocre: passagem ao hiperespetacular, o fim do direito autoral, do livro e da escrita” (Sulina), “A orquídea e o serial-killer” (crônicas, L&PM) e agora “Jango, a vida e a morte dno exílio” (L&PM).



Por falta do que fazer, escrevi. É bom.

Sou um felizardo. A mídia me adora. Devo ter tido – tirando “Getúlio”, que recebeu um pouco mais, especialmente da IstoÉ – umas dez linhas sobre meus livros na imprensa brasileira. A edição francesa de “Um escritor no fim do mundo” teve mais de 40 matérias na imprensa gaulesa. Por todos esses livros, ganhei um prêmio com “Para homens na crise dos 40”. Aí percebi que poder ganhar muitos outros e desisti de concorrer a prêmios. Vez ou outra, sou inscrito pelas editoras sem ser consultado. Não vou às cerimônias de revelação dos ganhadores. Perco até para cavalo paraguaio cansado.

“História regional da infâmia” deveria ter ganho todos os prêmios do ano, do Açorianos ao Jabuti. Como é um livro que desmonta o mito farroupilha, tomou ferro e fogo. Meu maior prêmio foram tradicionalistas prometendo, por telefone, me capar. “Solo” deveria ter engolido todas as distinções da ficção, mas, por discrição, passou em branco. Resenhistas moderninhos não o entenderam por ser um pastiche de Paulo Coelho, Dan Brown, Carlos Castañeda, Diogo Mainardi e até das minhas crônicas de jornal. “Vozes da legalidade” merecia uma montanha de prêmios. Mas não ficaria bem valorizar uma louvação a Brizola. “Getúlio”, o primeiro dessa série, deveria ter sido livro do ano. Foi poupado desse fardo por não ter feito a crítica paulista ao ditador. Ao dizer isso revelo minha modéstia e meu reconhecimento a todos. Sou a favor de mostrar as tripas na rua. Aplaudo as enrolações e compadrismos da mídia e de certas editoras, assim como as panelinhas dos prêmios.

Acabo amaldiçoado só por isso. Que coisa! Por tão pouco.

Sou mais o Lira Neto. Com a sua biografia de Getúlio, ele é um sucesso total. O livro dele é mais rigoroso? Negativo. Tem muita informação, mas nenhuma novidade. Ele inventou três: a primeira, sobre o assassinato de um jovem em Ouro Preto pelos irmão de Getúlio; outra, sobre um homônimo de Getúlio que matou um cacique no Rio Grande do Sul e, por fim, sobre o discurso de formatura de Vargas. Tudo isso já estava em outras obras e os historiadores trataram de mostrar isso. Tempo perdido. Lira Neto tem mídia. Publica pela Cia das Letras. É amigo das redações cariocas e paulistas. Sabe vender informação requentada como se fosse nova. É o meu ídolo, meu modelo e exemplo.

Quando eu crescer, quero saber fazer como ele.

Escrevo isso por gostar de escancarar as coisas. Não ligo para jornais de São Paulo e de Rio de Janeiro pedindo espaço para meus livros. Aposto na relação direta com o leitor. Se “Jango, a vida e a morte no exílio” não tivesse a minha assinatura, o autor seria entrevistado no Roda Viva, no Jô Soares, no Frente a Frente, na Marília Gabriela, no Danilo Gentilli, no escambau e daria capa em todas revistas semanais. Isso seria extremamente constrangedor. Ganharia o Jabuti de livro do ano. Eu morreria de vergonha. Prefiro pensamentos grandiosos: não calarei a minha consciência em troca de resenhas. Nem deixarei de dizer o que penso para não ser chamado de ressentido. Sempre defendi o direito ao ressentimento. “A sociedade medíocre” é a leitura mais radical da era da internet feita no Brasil. Não cabe na cabeça dos resenhistas aristotélicos e que nunca leram Guy Debord.

Autor calejado e vergado pelos anos, dou conselhos aos jovens desejosos de obter algo que eu considero vulgar e indesejável: sucesso na mídia, de vendagem, de crítica e de prêmios:

1 – Nunca brigue com todos os jornais do país, especialmente nunca brigue com todos eles ao mesmo tempo.

2 – Se escrever sobre temas históricos, jamais romanceie. Ou escreva logo um romance. Nesse caso, ponha pouca história. Leitores brasileiros detestam misturas de gêneros. Querem definições, clareza, esclarecimentos.

3 – Se escrever um livro sobre Jango, comece assim: “Jango foi assassinado. Neste livro, apoiado em documentos inéditos, provaremos isso”. Ou, ao contrário, comece com “Jango não foi assassinado. Neste livro, apoiado em documentos inéditos, provaremos isso”.

4 – Nunca demonstre mágoa ou ressentimento, principalmente se tiver razão e bons argumentos.

5 – Participe de um grupo que possa elogiá-lo em troca dos seus elogios a cada livro do grupo publicado.

6 – Jamais ataque um medalhão, uma estrela, um ídolo, uma referência, um monstro, especialmente aqueles de quem não gosta e sobre os quais poderia dizer algo pertinente.

7 – Nunca revele o que pensa dos seus pares.

8 – Se puder, esbanje humor. Evite a ironia. Ela é letal.

9 – Se tiver certeza do seu talento, diga o contrário.

10 – Se não tiver certeza, finja o oposto.

11 – Tente ser fashion e estar em sintonia com as tendências. Em contrário, será visto como brega.

12 – Faça uma escolha: prêmios ou leitores. Se tiver só leitores, será odiado pelos premiados.

13 – Nunca se queixe em público.

14 – Se pensar como eu, não escreva.

15 – Se escrever, não publique.

16 – Jamais rotule a mídia carioco-paulistana de sertanejo universitária ou de provinciana. Ela se vingará pelo silêncio, por notinhas neutras ou por críticas. Não sofra por ver que a mídia prefere dar uma página a uma partida de futebol de Chico Buarque do que uma nota sobre seu livro. Isso se chama critério de noticiabilidade. A cada conforme o seu capital simbólico na era da mídia.

17 – Nunca tente deixar de ser mal dito. É para todo vida. O maldito passar a vida carregando a sua ironia.

18 – Não se irrite com os néscios que lhe dão tapinhas nas costas e o consolam com palavras amigas: “Não seja tão ressentido”, “está melhorando” ou “ainda vão reconhecer o tão talento”. Nem com os inimigos: “Você é medíocre mesmo”, “escreve mal para ca...ramba”. Goze!

19 – Escreva por amor, por prazer e para si. Mas não escreva para não ser lido. O desafio é ser inovador, claro, interessante, universal, transparente e legível.

20 – Aprenda a viver sem fatores de legitimação (críticas favoráveis, prêmios). Aproveite o prazer da solidão. O maior prêmio é o leitor que o para na rua para uma conversa sobre um personagem, uma descrição ou um fato.  E para uma foto com o seu autor preferido.

21 – Torne universal o particular. Paulo Coelho é mais universal que todos os escritores brasileiros atuais com suas histórias sem transcendência e suas frases buriladas excessivamente. Nesse sentido, paradoxalmente, ele é o melhor escritor brasileiro apesar de ser muito ruim.

22 – Não faça literatura. Conte a vida.

23 – Escreva, na ficha do hotel, no item ocupação: escritor. Se não se sentir falso, continue a escrever. Em contrário, vã fazer outra coisa. Por exemplo, colecionar camisetas de clubes de futebol.

24– Não se envergonhe de fazer a sua própria propaganda nem de escrever longos ensaios sobre a sua obra. Lembre-se: você não é o seu melhor resenhista. É o único.

25 – Não se espante por não ver seus livros nas vitrines de livrarias. Acostume-se a responder a uma questão bizarra: "Onde posso encontrar teu livro?" Seja educado, não responda na padaria.

26 – Se tiver ânsia de reconhecimento, pare de escrever. Se tiver ânsia de vendagem, pare de publicar. Se escrever e publicar for um prazer, siga em frente. Um grande escritor, como sabia Borges, inventa o seu estilo e o seu público. Os parâmetros para julgá-lo ainda não existem



 


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