Vincenzo Susca: o retorno das emoções

Vincenzo Susca: o retorno das emoções

Entrevistas do Caderno de Sábado

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Natural de Roma (1977) doutor em Sociologia pela Sorbonne, diretor do departamento de Sociologia da Universidade Montpellier III, editor da revista “Cahiers Européens de l’Imaginaire”, autor de “Nos limites do imaginário, o governador Scharwzenegger e os telepopulistas”, “Pornocultura, viagem ao fundo da carne”, em coautoria com Claudia Attimonelli, e “Afinidades conectivas” (Sulina, 2019), Vincenzo Susca olha a Europa por um ângulo pós-moderno marcado pela força do emocional.

 

Caderno de Sábado – A Europa está passando por uma renovação conservadora?

Vincenzo Susca – Todo o Ocidente é agora vítima do retorno da direita. Não é uma questão de mero conservadorismo, mas de uma tendência populista em nome da antipolítica, até mesmo de uma negação da democracia com o pretexto de devolver a palavra diretamente ao povo, através da mediação de uma única pessoa: um homem sem qualquer qualidade exceto a de parecer parte integrante desse povo remanescente. Eu disse bem, "parecer”, porque esses líderes nunca têm realmente de origens populares. A diferença entre o caso europeu e o resto do Ocidente é paradoxal: a ascensão dos populistas no Velho Continente é em grande parte um efeito e uma responsabilidade das próprias instituições europeias.

CS – Por quê?

Susca – A Europa não conseguiu mobilizar, canalizar e acompanhar o imaginário europeia tanto no seu aspecto tradicional (história, mitos, línguas, religiões, culturas populares, festas) quanto em relação a sua atualidade (o esporte, as cenas urbanas e musicais, as culturas digitais). As instituições de Bruxelas e Estrasburgo são o resultado de compromissos políticos, não têm alma e evocam acima de tudo um espírito burocrático. Não só não estão sonhando, mas estão completamente desconectados da vida cotidiana. É por isso que todos os movimentos que apoiaram esse modelo são rejeitados pelos eleitores de esquerda e de direita. A crise não diz respeito apenas à esquerda, mas também a vários setores da direita, como é evidente no caso da Itália, França, Alemanha e Reino Unido. Os populistas são os únicos que se propõem a quebrar tudo e que falam ao estômago com da população. Claro, isso é apenas uma encenação.

CS – Quais são as consequências desse cenário?
Susca – A crise da Europa, o fim do equilíbrio político clássico baseado na oposição entre direita e esquerda, a extensão dos impulsos antissistema e o desdobramento de um imaginário baseado no medo do outro.
CS – Isso explica o caso italiano?
Susca – Absolutamente. O governo italiano, um ano depois das eleições, é muito popular entre os eleitores, apesar de sua inércia. Isso mostra o quanto a comunicação é o coração da política contemporânea e o quanto as pessoas ficaram desapontadas com a centro-esquerda. No entanto, tenho certeza de que o tempo não ajudará esses populistas. Suas promessas são inatingíveis e perigosas. Após a raiva, virá novamente o tempo de pensamento.
CS – Os intelectuais têm um papel a desempenhar nesta nova situação?
Susca – De jeito nenhum. Primeiro de tudo, já não há muitos. Para o resto, seus dispositivos retóricos e midiáticos estão cada vez menos em sincronia com o nosso tempo. Eles ainda se dirigem à opinião pública, mas já estamos na era da emoção pública. Por outro lado, se o intelectual perdeu sua centralidade, o pensamento está longe de estar morto. Permanece cada vez mais em uma nova forma de intelectual total citada por Karl Marx: no coração da vida cotidiana em sua versão conectada via redes sociais e em ação em ambientes urbanos. Nessas formas de estar-junto, há uma profunda verdade de ordem transpolítica, que anuncia o que se seguirá na política.
CS – Na Europa, como nos Estados Unidos e no Brasil, as redes digitais são a mídia dos populistas?
Susca – Na Europa, como na América, isso só acontece porque a esquerda ainda está enraizada na cultura alfabética, baseada na abstração e no indivíduo. Desprezando as emoções, eles oferecem a Web como um presente para os populistas. No entanto, estes estão longe de expressar a vanguarda do nosso tempo, muito menos a cultura digital. Eles acompanham a raiva e decepção daqueles sem cultura, representação política e narrativa. Eu vejo este momento como uma transição. Uma fase termina, outra começa. Enquanto isso, há máscaras, caça     às bruxas, monstros, incluindo populistas. Atenção: eles mostram o que está morrendo e não o que virá.
CS – Neste contexto, a esquerda está morta na Europa?
Susca – Os esquerdistas clássicos vivem uma crise irreversível. Eles estão ligados a uma visão da história baseada no futuro, enquanto a cultura contemporânea favorece o presente. Estão enraizados no trabalho enquanto o imaginário atual defende o lazer. Confiam no contrato social e no universalismo enquanto estamos em plena atividade na era dos pactos, situações e localismos. No entanto, se a esquerda é obsoleta, permanece uma efervescência cultural que lembra e renova um certo espírito anárquico valorizando a ética do vivido, do comum e do imaginário. Isso é o que eu chamo de "Afinidades Conectivas". Uma "comunicracia", a forma de poder que está realmente substituindo a democracia. Baseia-se na comunhão de uma comunidade em torno de uma comunicação. Cada “comunicracia” é a causa e o efeito de uma maneira de estar juntos. Ela tem a sua verdade nisso, não importa sem é fake, pois serve para estruturar e dar significado do grupo.
CS – Há futuro para uma política de solidariedade?
Susca – A solidariedade é hoje menos um princípio do que uma situação vivida, vivenciada dia a dia pelas diferentes conexões que caracterizam as relações contemporâneas: na rua e na Web, nas afinidades conectivas. Nesse sentido, é importante notar que a cultura digital é baseada na conexão, na empatia, na aproximação geral com os outros. Não é por acaso que McLuhan falava em "aldeia global" para descrever a passagem entre a galáxia de Gutenberg e o mundo da nova mídia eletrônica. Nossas vidas estão cada vez mais interligadas, numa condição de interdependência. Estamos colados aos outros. Como quando se vive com alguém, há mais amor e mais ódio, mais solidariedade e mais conflito. É preciso se acostumar com essa nova configuração. Ela veio para ficar.
CS – A Europa está pronta para essas mudanças?
Susca – De um ponto de vista institucional, não de todo. Quando se trata do lugar onde nações-estados e democracias nascem, é difícil que sejam superados. Para isso, seria necessário ter a coragem de dar um passo adiante, valorizando a história do Velho Continente, seu imaginário profundo, seus arquétipos: suas raízes greco-romanas, a Idade Média e a Renascença constituem, nesse sentido, raízes que também nos oferecem uma grande perspectiva para o futuro, além e aquém da modernidade.

 


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