Vozes da Legalidade e Patagônia na Feira do Livro

Vozes da Legalidade e Patagônia na Feira do Livro

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Sou mesmo um exagerado.

Sou discípulo de Cazuza.

Com algumas diferenças.

Hoje, 18 horas, no estande da Record-Rs, na Feira do Livro, faço sessão de autógrafos de Vozes da Legalidade.

Hoje, 19 horas, no pavilhão de autógrafos da Feira do Livro, lançamento de Um escritor no fim do mundo, viagem com Michel Houellebecq à Patagônia.

Tudo num dia assim, enfileirado.

Depois, tomo uma garrafa de espumante e vou dormir.

Cumpri o meu dever.

E ainda dou uma, duas palhinhas.

*

Sim, Brizola pensava nisso tudo. Pensava em Lacerda, o corvo repelente, contrapondo-se ao apoio de Jânio à Cuba com a entrega da chave do Rio de Janeiro ao principal líder anticastrista, Manoel Verona, cuja base de resistência ficava em Miami. Pensava em como Jânio chegara ao poder. Esse homem que seria descrito por Amir Labaki como uma caricatura: “Talco imitando caspa no paletó amassado, sanduíche de mortadela no bolso, vassoura na mão. Quem não viu ao menos uma vez essa triste figura, ao som de varre, varre, vassourinha...” Brizola pensava no principal oponente de Jânio, o marechal Lott, candidato do PTB e do PSD, os dois partidos antagônicos e complementares, irmãos inimigos, forjados por Getúlio pouco antes de ser derrubado do poder, em 1945. Contra o moralismo de Jânio, Lott brandia sua espada, mas, como lembraria Atenante Normann, para Jânio, conforme seu slogan, “a espada do povo é a vassoura”. Pobre, Lott! Ao vertiginoso “varre, varre, vassourinha, varre, varre a bandalheira, que o povo está cansando de sofrer dessa maneira”, opunha a sisudez militar do seu jingle espartano, “espada de ouro/quem tem é o Marechal/Lott, Lott, pra presidente do Brasil, porque/nasceu e defendeu o Brasil/que é meu e de você...” ou “De leste a oeste, de sul a norte, nesta terra brasileira, é uma bandeira o marechal Teixeira Lott”. O Brasil seria de Jânio Quadros, o “soldado do povo”. Pior que o jingle de Lott só o do candidato do PSP, preterido pelos eleitores em 1956: “Desta vez vamos com Adhemar...” Era o retorno de um derrotado. Para vice-presidente, cantava a campanha de Jango, “nossa gente vai jangar”.

Por pouco tempo: de 31 de janeiro a 25 de agosto de 1961. Brizola sabe que não pode fraquejar, ele que é visto como radical, incendiário, até comunista, vermelhinho por dentro, como dizem seus detratores, por ter encampado, em 13 de maio de 1959, a companhia de energia elétrica, pertencente à americano-canadense “Bond and Share”, pelo valor simbólico de um cruzeiro, o que fará depois com a companhia telefônica, filial da “International Telephone and Telegraph Corporation”(ITT), determinado a vencer o estrangulamento do Estado  derivado de tarifas altas e serviços baixos, 14.300 telefones para 670 mil habitantes de Porto Alegre. Faz frio nas ruas de Porto Alegre. O mundo oscila, desde os primeiros dias de agosto, como sempre, como nunca, entre a esperança e o medo. Jean Monnet propõe a construção de uma “Grande Europa”, velho sonho que derrubará todos os obstáculos para se realizar nas décadas seguintes, e todos riem dessa utopia fadada ao fracasso num continente ainda remexendo as cinzas quentes do nazismo. Descobre-se uma rede de contrabando de drogas na Bolívia, como se todas as notícias devessem ser velhas no futuro, mudando apenas os nomes dos fornecedores sul-americanos. Os funcionários da Carris fazem greve por melhores salários, o vice-presidente João Goulart, cunhado de Brizola, o estancieiro de São Borja bonachão e idealista, viaja, em 28 de julho, em companhia de empresários, do diplomata Araújo Castro, dos senadores Barros Carvalho e Dix-Huit Rosado e dos deputados Franco Montoro e Gabriel Hermes, à China para pavimentar o estabelecimento de relações diplomáticas com a grande nação comunista, Titov parte para o espaço, de um deserto quase místico da Ásia Central, no dia 7, pilotando a “Vostok II”. Na Conferência de Punta del Este, no dia 9, Che Guevara, que, alguns anos depois, pela força mítica do seu assassinato nas selvas da Bolívia e de uma fotografia transfigurada será “el Cristo de Vallegrande”, denuncia as ações dos Estados Unidos para solapar, falava-se assim naquela época de maiôs proibidos, o processo histórico e revolucionário dos países subdesenvolvidos rumo à libertação. Guevara denuncia também – ainda com as imagens na mente da tentativa americana fracassada de invasão, em abril, da Baía dos Porcos – articulações americanas, a partir da base de Guantánamo, o que será confirmado em seguida por um certo José Rosabal, sem que isso possa aumentar a sua força retórica, para assassinar o ministro cubano das Forças Armadas, Raul Castro, e forçar a intervenção dos Estados Unidos na região, como se os americanos precisassem mesmo de um álibi para fazer o que lhe parecia obrigatório. Três meses antes, justamente no episódio da Baía dos Porcos, os cubanos haviam resistido ao desembarque americano, na “Operação Magusto”, e imposto um vexame oceânico ao ativo e jovial presidente John Kennedy, que morreria antes de Che Guevera, sem a sorte de tornar-se mártir, embora também, de certa forma, tenha sido, e sem foto transfiguradora. Leonel Brizola, na metade de agosto, atento, excitado, preparava-se para a Conferência de Punta del Este enquanto as tardes caíam pesadas, turvas de frio e, quem sabe, de presságios, sobre a languidez frisada do Guaíba.

*

Tomamos café muito cedo e saímos, com um guia falando francês, para um passeio no Parque Nacional da Terra do Fogo. Michel estava perfeitamente silencioso. Acho que a voz só lhe voltava depois das 10 horas da manhã. Cláudia e eu brincávamos com a sonoridade dos nomes de tudo um pouco: Baía Lapataia, Tierra del Fuego, nothofagus, Canal de Beagle, Cabo de Hornos, Cap Horn, “Ussuaia”, Fin del mondo, Passagem de Drake... Ali, naquelas terras extremas, haviam vivido os Onas, comedores de guanaco, os Yaganes, comedores de moluscos, de peixes e de focas, e outros grupos humanos, desde milhares de anos antes de nós, comedores de hambúrgueres, de queijos podres e de picanha assada. Depois, como exterminadores do passado e do futuro, haviam chegado os europeus, a expedição precursora de Fernão de Magalhães, em 1520, e, ao longo do novo tempo, os evangelizadores, anglicanos e salesianos, portadores da Boa-Nova que não deixaria pedra sobre pedra, salvo o fim sem ilusão como promessa de uma eternidade messiânica e sem finalidade.

Ali estávamos, repito, junto com o escritor que mais havia satirizado o turismo nas últimas décadas, especialmente em “Plataforma”, e que havia também zombado ao extremo, em “A possibilidade de uma ilha”, das utopias religiosas e dos seus messias. Enfim, o escritor que tudo ridicularizara, das confraternizações entre colegas às viagens de férias. Mesmo assim, sem qualquer complexo, corremos para nos fazer fotografar juntos a uma placa com uma autêntica inscrição simulada: Estação do Fim do Mundo. Dali partia um trenzinho turístico. Michel mostrou-se rapidamente um excelente fotógrafo para alegria da Cláudia. De mim, ela já nada esperava. Sou um especialista em imagens naufragadas. O prospecto da agência de viagens falava em montanhas, florestas e mar.

A Cordilheira dos Andes é um imaginário que se vende bem. O guia parecia ter um mantra. A cada três frases, referia-se aos aspectos “patagônicos e magalhânicos” da região. Em algum momento, ele explicou pausadamente:

“Aqui é o começo da famosa rodovia Pan-Americana, que vai até o Alasca, passando por selvas e montanhas, ao longo de 32.424 quilômetros de aventuras”.

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