Woody Allen não sabe, mas eu sou ele

Woody Allen não sabe, mas eu sou ele

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Acordei com a célebre frase do poeta Jean-Arthur Rimbaud na cabeça: “O eu é um outro”. Sou outro. Mas quem? Fui ao espelho. Não tive dúvidas. Woody Allen. Liguei para um amigo e disse: “Eu sou Woody Allen”. Ele não duvidou: “Claro, claro, ainda bem que não tens enteada”. Achei a resposta inadequada. Ameacei com um processo. Meu amigo não se impressionou. Disse que tinha mais a fazer e que eu discutisse o assunto como meu psiquiatra. Não entendi a sugestão. É claro que eu sou Woody Allen. É verdade que sou mais bonito e inteligente, embora, por circunstâncias, menos famoso e menos rico.

Tenho ideias de Woody Allen. Escrevo melhor do que ele. Tenho delírios de Woody Allen. Ainda bem que não toco qualquer instrumento. Temos a mesma matriz de pensamento, as mesmas neuroses e as mesmas obsessões. O fato de eu ser Woody Allen me traz muitos problemas. Alguns leitores não compreendem a minha mente privilegiada e queixam-se de mim. Acham que sou comunista, petista, esquerdista ou coisa parecida. Não percebem que estou aquém e além de todas as ideologias.

Aí começa o problema: como explicar essas noções de aquém e além?

Como pode alguém estar, ao mesmo tempo, aquém e além de alguma coisa?

Estar aquém significa não se deixar dominar pelas oposições categóricas, apesar da angústia que isso provoca e dos gastos com psicanálise, entre bem e mal, esquerda e direita, moderno e pós-moderno, passado e presente, alta e baixa cultura, espetáculo e pensamento, Ana Paula Arósio e Bruna Marquezine. Estar além implica reconhecer que, apesar disso, elas ainda existem. Só eu e Woody Allen somos capazes de compreender isso. Jean Baudrillard também era. Jean morreu em 2007. Apagou-se um farol. Sobramos Woody e eu. A solidão que nos envolve explica, em parte, nossa profunda identificação. A solidão dele é ainda pior, o que me parte dramaticamente o coração em mil pedaços, pois não sabe que me tem como companhia, como seu duplo.

Um colunista precisa confessar-se aos seus leitores, pois a sua produção objetiva depende das suas condições subjetivas. Seria desleal de minha parte não informar a todos que sou Woody Allen. Só não assino os seus filmes. É que ele insiste em fazer o mesmo todo ano. Sou contra. O filme de Woody Allen sobre Paris poderia ter sido feito por mim. Só não o fiz por ter sentido que Woody queria explorar aspectos clichês do imaginário sobre Paris, o que não posso aceitar. Alguém me disse que havia uma crônica minha circulando com o nome de Woody Allen. Normal. Pensei, o malandro já quer sair do armário.

Conclusão: é bom não se impressionar com tudo o que digo. Woody Allen é responsável pelos textos mais polêmicos. É ele que insiste em cobrar da justiça brasileira o julgamento do mensalão tucano. É ele que vê uma tentativa de golpe nas articulações pelo impeachment da presidente Dilma. É ele, enfim, que critica os privilégios da magistratura e de outros bolsões da elite branca de olhos azuis. Eu sou Woody Allen, mas temos diferenças. Ele gosta dos livros do Chico.

Embora não os tenha lido e não saiba disso.

 

 

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