Zumbi, Sartre e a liberdade

Zumbi, Sartre e a liberdade

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Zumbi, herói negro

 

      Ontem foi Dia da Consciência Negra. Dia de constatar que os negros construíram o Brasil e que o Brasil continua racista. A mais insistente estratégia do conservadorismo racista brasileiro consiste em tentar desqualificar personagens da resistência negra à escravidão. Zumbi dos Palmares seria tão escravista quanto os portugueses contra os quais lutava e que lhe salgaram a cabeça em 1695. A coisa vai mais longe. Semeia-se a ideia de que os portugueses não pisaram na África e “apenas” compraram escravos oferecidos pelos africanos. Seriam, no máximo, receptadores. A jogada propõe a absolvição dos brancos na base do “se os negros venderam negros, por que os brancos seriam mais culpados do que eles nesse lodo?”

Não passa de uma manifestação do “ignorancialismo” dominante. Operação consciente de deturpação da história. O capitalismo comercial, no qual se insere a colonização do chamado “Novo Mundo”, baseou-se na exploração do trabalho escravo arrancado por todos os meios possíveis da África, onde a escravidão existente tinha outro estatuto na intrincada rede de relações sociais tribais, algo, muitas vezes, mais parecido com as relações de proteção ou dependência estabelecidas na Idade Média ocidental. O escravo na África não era ferramenta inumana de trabalho.

Zumbi nasceu livre. Virou escravo. O gaúcho Décio Freitas, meu grande amigo, teve importante papel na exumação desse personagem fundamental da história da luta contra a escravidão no Brasil. A história nunca é plana. Contradições permeiam os acontecimentos. Zumbi, contudo, representou a mais renhida resistência inicial ao branco escravista. O jornalista mais citado do momento para desqualificar Zumbi atola-se numa confissão: “Não dá para ter certeza de que a vida no quilombo era assim mesmo, mas os vestígios e o pensamento da época levam a crer que sim”.

Com esse fundamento nada se pode afirmar de consistente. Tudo vira mera conjectura ou argumento de cunho ideológico. Uma especulação confessa vira prova: “É claro que Zumbi tinha escravos. Sabe-se muito pouco sobre ele – cogita-se até que o nome mais correto seja Zambi -, mas é certo que viveu no século 17. E quem viveu próximo do poder no século 17 tinha escravos, sobretudo quem liderava algum povo de influência africana”.

Só documentos dão acesso ao passado. Eles podem mentir. Sem eles tudo é ficção. Zumbi existiu e não foi um senhor de engenho negro. O governador de Pernambuco, Caetano de Melo de Castro, gabou-se ao rei de Portugal: "Determinei que pusessem sua cabeça em um poste no lugar mais público desta praça, para satisfazer os ofendidos e justamente queixosos e atemorizar os negros que supersticiosamente julgavam Zumbi um imortal, para que entendessem que esta empresa acabava de todo com os Palmares”.

 

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Ontem, Wagner Machado da Silva, negro, meu orientando, defendeu sua bela dissertação de mestrado, no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da PUCRS: “Equidade e televisão: O programa Mister Brau, da Rede Globo, e o estímulo à (re)construção do imaginário social do negro no Brasil”.

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Idade da razão

 

 

 

 

Sergius Gonzaga sempre tem boas ideias. Cria ótimos eventos. Pode ser um excelente secretário estadual da Cultura. Ele me convidou com outros escritores para falar na Feira fora da Feira, que tratou de livros que marcaram época e não são mais lidos. Escolhi a “Idade da Razão”, de Jean-Paul Sartre. O encontro aconteceu numa bela sala do Multipalcos São Pedro. Sartre foi um monstro. Ambíguo durante a ocupação alemã de Paris, aceitou a vaga num liceu perdida por um judeu. Terminado a guerra, fez parte do grupo que apontou o dedo para escritores colaboracionistas. Intelectual engajado, cometeu uma gafe em 1954 e um acerto em 1964. A gafe foi ter dito, ao voltar de Moscou, que havia liberdade plena de crítica na União Soviética. O acerto foi a recusa do Nobel da literatura. Rendeu.

Se ele perdeu o dinheiro, ganhou a admiração do mundo. “A idade da razão” (1945), primeiro volume da trilogia “Caminhos da Liberdade”, completada com “Sursis” (1947) e “Com a morte na alma” (1949), conta uma história cristalina: um professor de filosofia que só quer ser livre procura dinheiro para pagar o aborto que a namorada terá de fazer, pois ele não quer se casar com ela. O tema é a liberdade. Escolhemos de fato? Ou somos empurrados pela necessidade, por contingências e estruturas? Como ninguém lhe empresta a grana, o personagem se vê obrigado a roubar. Imposição ou escolha? O irmão dele lhe ofereceu o dobro para casar.

Reli o romance pela décima-quarta ou décima-quinta vez na tradução que carrego comigo desde o tempo da faculdade. É ruim. Daniel, amigo do protagonista, não lhe empresta o dinheiro, mas decide casar com a moça para que ela tenha o filho. No ápice da trama, confessa-se ao amigo:

– Mathieu – disse – eu sou pederasta.

A palavra soa hoje engraçada. A reação de Mathieu, homofóbica. O próprio gay se apresenta como “invertido” e fala em “homem sadio” e “normal”. Grita: “Todos os invertidos têm vergonha, está na sua natureza”. O narrador observa: “Mathieu acendeu outro cigarro, e como ainda sobrasse um resto de rum no copo, bebeu-o. Daniel lhe inspirava horror”.

Lola, cantora decadente, “toma” cocaína. Dinheiro é gaita. Gírias passam. Comprometem traduções depois de algum tempo. Temos esta conversa:

– Essa é boa!

– Ela disse que isso lhe acontece às vezes quando toma cocaína.

Detalhes sem importância certamente. O romance mantém a sua vitalidade apesar da passagem do tempo. Sem frases complicadas ou vertigens verbais, conta uma história que faz pensar. Em 1945, Sartre estava falando de aborto, sexo sem casamento, homossexualidade e liberdade individual em linguagem acessível a todo mundo. Era uma época em que a literatura pretendia ajudar a mudar a mundo. A idade da razão é aquela que atingimos quando tomamos consciência da nossa irracionalidade cotidiana.

 

 

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