Resenha: "A Filha Primitiva", de Vanessa Passos

Resenha: "A Filha Primitiva", de Vanessa Passos

Romance de estreia da autora venceu o Prêmio Kindle de Literatura 2021

Henrique Massaro

Onde muitos recorreriam ao sentimentalismo, Vanessa Passos é dura e sucinta

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Dar nome a um filho ou a um personagem é sempre uma decisão carregada de significado. No âmbito do real, diz mais sobre quem dá a vida do que sobre quem nasce; na literatura, mais a respeito da criatura do que do criador. Um nome, seja ele qual for, forma um esboço, uma projeção sobre aquela pessoa fictícia. Em “A Filha Primitiva”, a escritora Vanessa Passos toma deliberadamente a decisão de não nominar não só uma, mas três personagens, três gerações de mulheres da mesma família que, na história que acompanhamos e na sociedade real, foram, são e serão julgadas a todo o momento, mas jamais pela sua autora. 

Nominados são, no entanto, os homens do livro, como o pai da protagonista e o pai de sua filha, que, até determinado ponto, têm em comum a ausência. São figuras masculinas que deixaram um rastro inapagável no mundo antes de evaporarem. O romance de estreia de Vanessa Passos, publicado pela editora José Olympio e vencedor do Prêmio Kindle de Literatura 2021, é centrado na história da segunda mulher sem nome desta família: a do meio, que é filha e mãe. Trata-se de alguém em processo de descoberta, numa jornada para o que é se tornar, de fato, essas duas condições que podem ser igualmente acidentais. 

Fosse apenas isso, contudo, “A Filha Primitiva” poderia ocupar a mesma estante que tantos outros livros de temáticas relevantes mas com narrativas empacotadas. Não é o caso. Onde muitos recorreriam ao sentimentalismo, Vanessa Passos é sucinta; quando o enredo parece convidar ao apelo emocional, encurta o caminho, limita os espaços e deixa a crueza das palavras, a dureza da realidade, a raiva que move a personagem em sua busca e que permanece durante todo o caminho. Todo e qualquer sentimento vem ao natural durante a leitura, como deve ser, e não porque a autora diz quando e o que o leitor deve sentir.

A protagonista tem, ou acredita ter, como único vínculo com sua filha, o peito onde a bebê ainda mama. Com a mãe, parece compartilhar somente a precária condição social. Mas, como ela perceberá no decorrer de cada linha costurada por Vanessa Passos, há muitos outros pontos que as conectam. A mesma brutalidade utilizada para descrever essas relações tão complexas é utilizada para mostrar a aspiração a escritora da personagem principal, que é muito mais do que uma simples paixão. 

Esta é uma das belezas de “A Filha Primitiva”. É uma declaração à maternidade na mesma medida que é uma inesperada declaração à escrita, este algo que sai de dentro de nós, que nos suga as energias, grita quando não é nutrido, que é só nosso durante algum tempo, mas que, assim que nasce, pertence ao mundo. 


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