Escrevivências: a literatura que celebra vivências do cotidiano

Escrevivências: a literatura que celebra vivências do cotidiano

Histórias escritas por pessoas negras afirmam a necessidade do lugar de fala para quebrar
estereótipos

Representatividade para quebrar estereótipos é o ponto central destas narrativas

publicidade

A escrevivência conceitua a escrita feita por e para pessoas negras - sobretudo mulheres - nascida do cotidiano e das experiências de vida. O termo cunhado pela escritora Conceição Evaristo, é a narrativa que, com resiliência e sensibilidade, condiz à realidade do povo negro. É o conjunto de histórias que questiona todo um sistema estrutural, em plena efervescência do movimento Vidas Negras Importam e próximo ao 20 de novembro,  Dia da Consciência Negra. Sendo base da sociedade em que está inserida, a mulher negra - junto à mulher indígena e no espectro fluído de sexualidade e gênero - luta de forma persistente para mudar um sistema opressivo através do diálogo e da escuta atenta de suas narrativas.

Presença de autoras negras ainda é mínima nas editoras

Segundo a jornalista Thayse Ribeiro, formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), para entender esta pouca presença, é necessário refletir a respeito de quem tem ocupado os espaços de poder e decisão nos lugares de fala. Uma vez que há pessoas com maior privilégio e dominância, deliberando sobre quem pode ou não publicar, a literatura negra vai seguir sendo invisibilizada. Expressivamente, há pessoas negras criando e divulgando sua literatura, ressignificando uma produção de conteúdo de muita força. Todavia, as editoras devem despir-se de preconceitos e aceitar estes indivíduos como os sujeitos ativos que são, historicamente pensando em resistência e histórias que devem ser contadas. “É mostrar que temos uma produção intelectual de homens e mulheres negras para serem apresentadas e afirmar seu valor cultural”. 

Há pouco reconhecimento acerca do trabalho feito por mulheres negras. Tida como inexistente na literatura nacional clássica, sua figura não está em outros espaços da arte, como TV e cinema. E quando aparece, é nos papéis considerados de margem. Entretanto, a mudança está acontecendo, sendo possível visualizar a pessoa negra em mais papéis de protagonismo. "Nós estamos nos vendo e nos reconhecendo mais, ainda que pouco.", aponta Thayse. 

Representatividade para quebrar estereótipos é o ponto central destas narrativas

A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie destaca em muitas de suas falas o perigo de contar histórias únicas, que acabam por reforçar estereótipos e colocam a mulher negra em espaços de subserviência constante.
Relatar seguidas vezes um tema recorrente desperta no subconsciente do ser que o ouve uma realidade pré-estabelecida. Logo, trazer narrativas onde há permissão do sentimento sob olhos de quem vive e sente na pele estes preconceitos da sociedade é indispensável para o empoderamento dessas pessoas. 

Nesta conjuntura, a representatividade importa muito. “Dizer às meninas e meninos que seus cabelos são lindos, que a cor de suas peles é linda e que podem ocupar os espaços que quiserem, não somente na literatura, porém em qualquer outro meio artístico.”, destaca Thayse. Mostrar que é possível é a chave para que o empoderamento aconteça. Aceitar e se permitir ser quem é - dado como um processo doloroso - contribui de modo relevante na luta antirracista. 

Vista como o principal caminho para desfazer estereótipos, a literatura destas autoras e autores precisa ser ensinada nas escolas. Este artefato poderoso chamado educação auxilia no trabalho deste reconhecimento, afirmando a presença da cultura negra. Ensinar às crianças desde pequenas que existem histórias iguais as delas é como dar a elas um espelho e o espelho sorri de volta.

Espaços periféricos são grandes expoentes de conteúdo 

Debatidas no meio acadêmico, as ditas bolhas segmentam classe social e intelectual constituída de pensamento hegemônico, levando todos que fazem parte delas, a pensar de forma semelhante. Uma semelhança que, de certa forma, obriga as pessoas negras (e por consequência, sua militância) de que são elas quem deve furá-las para chegar em comunidades periféricas. “O debate deve a partir de várias classes, pessoas e bolhas. Precisamos olhar para as periferias. O debate chega lá sim. Temos vários exemplos de líderes comunitários, de seres que têm bastante consciência de sua condição, que lutam e militam.”, conclui o patrono da 66ª do Livro de Porto Alegre, o escritor Jeferson Tenorio. 

O reconhecimento de privilégios norteia o papel da pessoa não negra na luta antirracista

Não basta afirmar ser antirracista, é preciso mudar essa realidade no cotidiano. Logo, o primeiro passo a ser dado pelas pessoas brancas é se educar sobre antirracismo. Se interessar pelo assunto, não achando que o problema é apenas das pessoas negras. Sendo o racismo uma questão que abrange a sociedade, há um compromisso de todos. “As pessoas privilegiadas necessitam entender que abrir mão das regalias significa manter uma relação ética e uma convivência harmônica com o outro. O mundo só é melhor quando grande parte das pessoas possam prosperar”.

Amplificar vozes negras para atingir novos públicos e transformar pensamentos

A Feira do Livro de Porto Alegre é um espaço de conhecimento. Portanto, seria essencial que o evento se posicionasse em relação a alguns temas do mundo atual. A questão da diversidade e inclusão, do antirracismo e fim do preconceito eram temas no radar. O que historicamente, não é recente. A própria comunidade cultural já vinha solicitando uma maior inclusão de autoras e autores negros na programação. 

A curadora desta Feira, jornalista, escritora e editora Lu Thomé, destaca a importância de eventos como a Feira do Livro pensarem em uma programação que promovesse tanto debate sobre diversidade, quanto a participação da comunidade cultural negra. “A Feira do Livro ganha muito, o público ganha muito nessa inclusão, nessa participação. Começando inclusive pela escolha do patrono desta edição, Jeferson Tenorio, não se perca nos próximos anos, podendo ser aprimorada cada vez mais.”, salienta.

É na troca de ideias com pessoas do movimento negro, que são abertas portas e janelas, firmando esta participação mais do que necessária ao longo dos anos. “Mas o que muitos me sinalizaram a partir disso, foi que dentro de uma programação oficial que discute vários temas, muitas autoras e autores negros acabaram recebendo a chancela de um evento importante como a Feira do Livro em seus próprios trabalhos. E isso, para a comunidade é muito importante. Há um ciclo que temos quebrar. A Feira como vitrine para dar visibilidade a esses autores é sim muito importante, e que se depender de mim, vai sempre continuar”.

Michelle Garcia / UniRitter


Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895