A areia movediça do nosso racismo

A areia movediça do nosso racismo

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Eu era criança, no final dos anos 70, e um certo programa humorístico fazia muito sucesso entre a gente. A cada segunda-feira, a meninada chegava na escola repetindo as piadas que os atores fizeram no final de semana. Era uma febre. Lembro perfeitamente de quando, volta e meia, um dos quadros fez piada pejorativa sobre a questão da cor da pele de um dos atores. Risadas de auditório ecoavam e repercutiam em nossas mentes infantis. Bom, nem é preciso dizer que a piada ecoava na escola no dia seguinte. E, para os que acham que o “politicamente correto” é mero “mimimi”, bom, certamente estes não eram alunos negros e mulatos que passavam aquelas semanas inteiras ouvindo a mesma piada e sendo chamados pelos mesmos adjetivos de mau gosto que o humor medonho, transmitido em rede nacional de televisão, incentivava. Em quantos ambientes isso se repetia, naqueles dias, por todo o país? Alguém consegue dimensionar isto? Alguém consegue se colocar no lugar de quem era chacota barata apenas pela cor da sua pele? A regra era rir. Muito natural. E ai de quem reclamasse.

A lei que foi sancionada no último 11 de janeiro, e que equipara a injúria racial ao crime de racismo, não sei nem se merece ser comemorada. É tempo demais, décadas demais para que um país se dê conta do mal que semeia como cultura nefasta. Eu fui criado em dias onde o preconceito era uma piada comum, mas muito mais do que uma piada comum, era um instrumento de humilhação diária que apenas quem sofreu pode explicar como de fato se sentiu. Ouvi muitas outras expressões bizarras serem parte do nosso cotidiano de expressões tidas como normais sendo ditas por quem nem se dava conta do crime que cometia, mas se achava um educador da família. Outros tempos, claro. Mas, sinceramente, não acredito que ainda estejamos perto de uma verdadeira abolição do preconceito no Brasil. Ele está tão enraizado quanto a cultura machista, que fala em igualdade para as mulheres mas fecha os olhos ao comercial de bebida alcoólica que coloca uma mulher de saia minúscula servindo bêbados que olham futebol, sendo trata como objeto de consumo tão descartável e comprável quanto a bebida que ela serve. A hipocrisia ainda nos atrapalha muito. E o discurso de ódio só ajuda a retroceder o que se pretende evoluir.

Ainda creio que temos um elenco de penas muito brandas, em efeitos práticos, que temos leis demais que são solenemente ignoradas, voltas legais demais para escapar das punições e, para piorar este contexto, não há muito esforço para se fortalecer a educação de base e mudar culturas nocivas. Mas há que se tentar melhorar. Evoluir. E não há outro jeito, senão com a ameaça de punições rigorosas, se a conscientização não consegue resultados consideráveis. O ideal era não precisarmos desta lei. O ideal era sermos todos humanos, com cidadania e respeito absoluto pelo outro, tendo nossa igualdade como algo tão natural como o vento que nos rodeia, este vento que não olha a quem toca e que sabemos que existe, mesmo invisível. Enfim. Vamos torcer que este não seja mais um passo dado na areia movediça.

 


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