A humanidade e a dignidade em Krenak

A humanidade e a dignidade em Krenak

Em um desses (um tanto raros, há que se admitir) momentos em que dá orgulho de ser brasileiro, a Academia Brasileira de Letras elegeu o escritor, filósofo, líder indigena e ambientalista Ailton Krenak como o nosso mais novo imortal.

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A paz tem caminhos difíceis. A construção de uma cidadania plena também. O Brasil, desde que foi tomado pela invasão portuguesa, colhe uma sucessão de dias de medo, mortes, absurdos e indignidades. Violações de toda ordem. Desrespeitos espalhados e multiplicados como vírus. Mas é um lugar tão lindo, o Brasil, que merecia a chance - ainda que saibamos remota - de uma virada nesse jogo. Caio Fernando Abreu dizia que a vida tem caminhos estranhos, tortuosos, difíceis, mas que às vezes um gesto involuntário pode desencadear todo um processo. A vitória de Ailton Krenak, para a cadeira número 5 da ABL, pode ser um desses gestos. Porque nem sei se os que o elegeram alcançam as possibilidades que ora surgem. Pois agora, quero crer, sua voz será ainda mais ouvida. E com atenção.

Não sou de acompanhar muito essas academicices. "Academia é só mania de quem tem plata",  diz sabiamente o João Chagas Leite na belíssima canção "Ave Sonora", que ele oferece ao injustiçado Quintana. Krenak já teve um reconhecimento na vida: o título de Professor honoris causa da Universidade Federal de Juiz de Fora. No mundo inteiro ele já é reconhecido como uma das principais lideranças do nosso povo. Ele é da etnia Krenaque e suas origens remontam ao Vale do Rio Doce, tristemente vilipendiado por mineradoras e mais uma vítima natural do desastre (leia-se crime) de Brumadinho.

Ailton fez história na Assembleia Nacional Constituinte, em 1987. Com sua voz firme, porém calma, com a sua postura cortês dos que não querem briga, mas nem por isso se rendem e deixam de lutar, calou aquele Congresso com seu protesto contra os direitos dos povos indígenas, sumariamente pisoteados pelas bancadas sustentadas pelos lucros do grande agro e das indústrias. Até hoje, é voz que descortina. Como um rio, segue sereno e decidido oferecendo água aos que querem beber, mas não nos poupa de suas cheias se a tempestade do desrespeito, tão comum nesse nosso estilo de vida, ignorar sua força e sua origem.

A voz de Ailton já era imortal. Mas o reconhecimento desta sociedade forjada no ritmo de vida europeu, para cá transportado como regra e ordem, é importante para que possamos, primeiramente, resgatar a autoestima dos nossos povos originários. Quem sabe valorizar nossa identidade real, raiz, e assim buscarmos um modo de vida mais adequado aos que estes antepassados pregavam. Os povos indígenas são a verdadeira resistência a tudo que aconteceu de horrível nestes últimos cinco séculos, como o genocídio de mais de seis milhões de seres humanos, integrantes dos povos que aqui habitavam, só no período colonial. Sem contar os doze milhões de nergos mortos sob a escravidão. Uma sociedade melhor, no Brasil, passa necessariamente pelo resgate de valores dos nossos indígenas. Pelo resgate de nossa identidade mais antiga, que sabia conviver em harmonia com a natureza, com os demais seres vivos e com os diferentes humanos. Coisas que não sabemos. E, por não saber, transformamos em violências diversas, todos os dias.

 

 


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